Tocar como ato revolucionário

Amada Amanda, 

Não acredito que essa será a 10a. Edição da Revista Escuta… este ano de 2024, não resistimos em nos enviar cartas mensais nessa editoria aquecida por uma certa intimidade e também pelo desejo de transpor as paredes do consultório: vida e arte, histórias nossas e deles, uma subjetividade atravessada pelo afeto. E quanto afeto! Enquanto isso… Krenak é eleito para Academia Brasileira de Letras, o BodyTalk tem seu primeiro de BodyTalk para Animais no Brasil (ainda em 2023), os amores vem e vão, o Rio Grande do Sul é coberto de água, sentimos saudades da Maria (Fontes), nossa terceira co-editora ausente nas cartas mas tão presente em nossas edições preocupadas com um novo letramento social… Enfim, fomos marcadas por um verão cheio de atravessamentos. Aqui, nessa edição estão presentes as co-editoras, os autores das outras edições, um novo projeto para 2025, enfim, o Escuta celebra encontros previstos e outros tão imprevisíveis mas tão afetuosos. E nada melhor do que fazer isso contigo, porque você trouxe um leitmotif para essa décima edição.

Surfando contigo, no seu curso sobre o toque, te proponho fazer e trocar cartas que possam tocar, na pele e na alma. Que a escuta ou os olhos possam saber da força do toque, como um sentido de amorosidade e cuidado e também de um corpo que ganha sentido quando tocado.

Depois da pandemia, costumo contar essa história que vivi no primeiro espetáculo de dança (como você se lembra, eu venho das artes) que assisti após os tempos de extremo recolhimento. Nele, desde as pessoas na fila de espera até estar na plateia, senti que minha pele saía do avesso… Sentia que era que como se estivesse vestindo uma blusa do avesso e então, naquele momento, virava ao contrário. Ou seria agora o lado certo da costura? Será que antes estava descosturada, desalinhada e naquele momento me aprontava de novo para sentir o mundo? Sentia minhas células de novo vibrando (o conceito de corpo vibrátil de Rolnik é tão lindo para isso!), sentia meu corpo deslizando nos sentidos todos, como se eu tivesse sendo aquecida… tudo se mexia dentro e em torno de mim. Foi uma das sensações mais estranhas porque vinha de um prazer mas também de um medo, um descolamento provocado pela realidade que fomos impelidas por um vírus. Meu corpo vertia do estado “cuidado” para a realidade “se toque”.

E desde então me vejo me convencendo a ser menos “distância” e mais “aconchego”. 

Sabe, Amanda, meus filhos mudaram de fase de vida após a pandemia. Eu me apaixonei na pandemia. Fui voltando a atender presencialmente (como desejava voltar a tocar os pacientes e olhar no olho). Voltei a sair, ainda aos poucos. O mundo continua estranho. E minha pele também.   Tocar e ser tocada, o outro e o mundo, não tem sido mais o mesmo. Sinto que agora tem mais coisas no mundo. Tem o risco e tem uma busca de segurança. Tem o vírus e o antídoto misturados. Tem um só e tem tantos outros também. 

Tocar o corpo, como sempre foi com a sensibilidade da dança e com a natureza do BodyTalk, sempre é muito potente. Histórias pulam da pele. O movimento pulsa na pele. A forma do corpo, do músculo, do osso parece que ganhou uma nova gramatura. 

A gente vem aqui elaborando, junto com quem a gente lê e junto com quem lê a gente, que as fronteiras do “eu” e da sociedade se dissolveram, como que liquefazendo. Somos o que lemos e somos quem nos lê. Somos nossas ideias e nossas histórias ficam na pele. Somos inclusive quem excluímos. Mesmo que a memória seja cicatriz ou se torne uma tatuagem, quando tocamos já não é uma parte, mas tem a promessa de muita coisa num centímetro. 

Quando toco meus filhos hoje, grandes, toco eles pequenos mas também a promessa do tamanho que eles são no mundo. Quando toco um paciente, toco as ideias que ele trouxe e verbalizou e todas as outras possíveis para seu corpo mente se ajuste, inclusive na dor. Toco a promessa. Toco um futuro. 

A pandemia, que nos tirou a pele, trouxe novamente a complexidade da possibilidade do que seremos. 

E nos tempos atuais, percebo que nossa habilidade de tocar, depois das telas que nos confundem do que é real, nos convoca para um toque que transpasse a pele. Que nela contenha tudo que não podemos ver. Talvez até o que não queremos aceitar. No entanto, ao tocar, um novo real se amplia em nós. Não achei o novo tempo que prometemos durante a pandemia. Tenho achado a pele cheia de algo novo que, na verdade, é mais do que sempre somos. Um mistério. Um provável. Um cheiro de “quero mais”com gosto de “sempre esteve aqui”.

Aprendi a tocar diferente depois da pandemia. E você, Amanda? Como anda sua pele?

Com amor na pele, 

Nirvana

maio 2024


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