Nirvana Marinho e Amanda Pinho
Carta 1 de Nirvana para Amanda, janeiro-fevereiro 2024
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O sopro do verão, além de quente, pode ser uma turbulência para a alma…
Querida Amanda,
O sopro do verão, além de quente, pode ser uma turbulência para a alma – ou inquieta com demasiada paralisia dos tempos de férias, ou desejosa por mais silêncio.
A brisa, o mar ou a montanha, o barulho das crianças, do violão, como o seu, Amandinha, ou os livros que não deu tempo de ler, sejam eles da nossa paixão ou da nossa dor.
Li um desses livros nessas férias, um da minha adolescência que reli. Você já teve a chance de olhar para você hoje com os óculos de quem você foi um dia? Do livro que já leu? Do amigo de infância que reencontrou? Do filme que viu pela milionésima vez e percebeu nuanças nunca antes vistas? Você já pôde se reencontrar com seu velho Eu, ou melhor, com seu mais jovem Eu com o corpo do seu mais velho Eu?
Foram assim minhas férias “el ninõ”, uma das mais quentes de todos os tempos. E por esse calor que queima a memória que quis te propor de falarmos de espelhamento (termo do BodyTalk), projeções ou transferências (termos da psicologia que você vai dominar muito mais do que eu) ou simplesmente desse olhar míope que temos para enxergar com mais profundidade para… nós mesmos.
Nesse formato da Revista Escuta de cartas, não tem título, não tem pretensão, não tem expectativa se não a de te ouvir, de te ler. Quero continuar sabendo de ti, do teu conhecimento e do teu conhecer, das tuas paixões e despaixões, porque é assim, sentindo e sabendo (ou desconhecendo) que nosso olhar está cheio. Confesso que às vezes, como terapeuta e como mulher, esvazio meu olhar. Como mãe, esvazio toda hora quando vejo que meus filhos mudaram ao acordar (risos). Mas quero nessa primeira carta de falar de turbulências da alma, quero falar do olhar e da memória que preenchem nosso jeito de ver a si e ao outro.
Das turbulências, fico sempre curiosa com um certo aspecto das crises da vida. Muitos de nós, ignoramos as crises: “eu, triste? não, imagina”. Tenho a memória de um dos meus irmãos que era assim, sabia. Ele nunca estava realmente tão triste quando parecia. Hoje ele tem questões respiratórias sérias… sinto pelos pulmões dele não terem suportado tanto tristeza oculta.
Alguns, enfrentam, com espadas em punho, querendo ter razão sobre a impermanência da vida: “isso não podia ter acontecido comigo!” ou “isso não está acontecendo!”. Conheça homens e mulheres que repetem isso com voz grave, impondo a vida, e ao outro ali do lado, um jeito de olhar a vida. Sinto que suas vozes sejam tão altas como as suas dores talvez sejam.
Outros ainda, se iludem: “ah, não é para tanto! você está exagerando! você está “louca” (aviso de gatilho forte aqui!). Este grupo de distopia aqui é o que mais me dói – e talvez mais diga sobre mim mesma. Colocar véus para ver parece ser uma alternativa para aceitar que uma das realidades do viver é a ilusão.
Em todas alternativas, a turbulência é ensurdecedora. Não escutamos mais nada, nem do que o outro diz nem do que dizemos para nós mesmos. Só escutamos o reflexo da dor. São ruídos que a alma não gosta porque não se faz escutar. Muitas vezes que não me sinto escutada parece que, na verdade, não consigo escutar nem mesmo minha própria voz, ou meu próprio silêncio (ambas faces da mesma moeda, alma).
Estes dias revi um desses filmes a que me referia: de um passado que ainda é presente, pois, revisto, ainda diz muito sobre mim. Esse dizer meio turbulento. Mas filmes são para isso, também. Para dizer da poesia do viver, não é?
É uma trilogia que assisti em meio aos amores da vida e entre reprimir meu desejo, impor meu desejo e me iludir com meu próprio desejo, o filme fala muito de um amor tão como ele é: pleno e vazio. Um casal se encontra em uma viagem de trem, tem uma noite de amor e não se encontram mais. Prometem mas não se vêem por anos. Reencontram-se no lançamento do livro dele que escreve sobre aquela noite e, ela, vai ao seu encontro. Ficam juntos. O terceiro filme são eles com seus filhos e com o futuro daquela viagem de trem. Discutem e se reencontram. Acho que isso vai te tocar também.
Revi o futuro, o terceiro filme. No passeio, no futuro com arrependimento, nos diálogos de adultos velhos pela dor da vida, vi muito sobre a turbulência que busca águas mais calmas – e as vezes encontra mais turbulência. Os olhos do futuro são austeros, muitas vezes. Vemo-nos e também aos outros e suas histórias, ainda que com menos julgamento, com receio de sentirmos a dor do nosso passado. Quanto mais medo, menos paz. Os encontros ou reencontros podem ser um constrangimento para a pele que ansiava por um futuro mais doce. Mas, no filme, o casal em questão discute, feio. Ou bonito se tivermos olhos para ver. Falam do que fizeram, do que não fizeram, o que prometeram, do que esperam um do outro, das decepções e desilusões, inclusive consigo. Sobretudo consigo próprio. A dois, parece ser quase impossível suportar as desilusões de quem amamos – adoraríamos que o outro fosse perfeito, tanto quanto nos cobramos o mesmo, não?
No filme e neste casal, vi um espelho. Um difícil e duro espelho que o amor pode mostrar. Conheço muitos que nunca tiraram a película protetora que um espelho tem quando novo. Parecem mesmo usar do espelho um tela de suas frustrações. O outro é reflexo de um “não” também. Daquilo que nos frustra, de rejeições possivelmente, de negações muito provavelmente. Pode ser um não da vida. Pode ser um não dos meus pais ou do meu passado.
Pode ser um não que não pode tornar sim. Nem todo não tem um final feliz.
Nem todo não se encerra né. Alguns nãos ficam…
Mas sabe o que fica ali cutucando? O espelho. Ele não sai de lá. Nem no casal, nem no filme quando assistimos pela enésima vez, nem do calor do silêncio. Fica martelando minha memória, cheia de nãos ou cheia de promessas de sins. A memória não consegue ficar no aqui agora. Ela precisa ou estar no antes ou na ânsia pelo depois. O que fica no presente é olhar.
Um olhar cheio de escuta. Um olhar cheio de toque. Um olhar vazio de expectativas (olhar vazio, nas Constelações, é um nome tão apropriado). Um olhar cheio de visão precisa caber um horizonte – se não a turbulência pode ser insuportável. Fico pensando que o espelhamento – ou seja, a capacidade de ver-se na relação com os olhos vazios – é uma benção. Nem sempre (risos) mas sim, é. É um sim. Um agora cheio de sins.
Ver o outro e dar-se conta de si mesmo tem toda humildade, toda paz, toda serenidade que pedimos para nossa saúde. É tudo que a alma pode. Ver o outro como espelho de nós mesmos é a maior dor que iremos suportar e a maior graça que poderemos amar. Ver no outro – amado, odiado, filho ou pai, filha ou mãe, conhecido ou desconhecido – é semente do viver, tal qual o viver pode ser. Aliás, assim é, não tem o que fazer. Nosso olhar estará espelhando no outro nós mesmos. Aceitar pode ser opcional. Mas treinar será nossa constante de vida.
Como você me vê, Amanda? Como você vê?
abraço com escuta
Nirvana
Carta 1 de Amanda para Nirvana, janeiro-fevereiro 2024
Recebi sua carta em uma tarde quente, turbulenta e sem ar condicionado…
Nirvana, amada,
Recebi sua carta em uma tarde quente, turbulenta e sem ar condicionado. Nesse processo de conhecer a mim mesmo aprendi bem cedo a não condicionar os afetos, mas o ar, amada, preciso dele gelado, caso contrário, minha ânsia de ser queimará as estantes que exibem em suas prateleiras não só livros, mas saudades, culpas e outros instantes. Esse teu convite de olhar para as turbulências da alma me brilha os olhos. Tenho me questionado em que momentos é necessário fechar os olhos pra enxergar melhor, com mais nitidez. Até consigo considerar que o turvo tem seu valor, mas a nitidez, que coisa magnifica essa de ser transparente!
Passei alguns minutos meditando nessa palavra que lançaste ao vento, espelhamento, me vi percorrer o tempo tentando imaginar o primeiro contato humano com esse objeto que tem a capacidade de refletir a nós mesmos de volta para nós. Numa rápida pesquisa no grande oráculo do universo, o google, descobri que os espelhos datam de mais de cinco mil anos. Os sumérios já usavam um protótipo feito de bronze do que iria se popularizar por toda a Europa no século XIX. No meio dessa viagem não pude deixar de lembrar de Narciso, aquele que se apaixonou pelo próprio reflexo na água.
Saber de si me parece ser uma característica fundamental da consciência. A grande revelação feita pela psicologia, ao meu ver, é a nossa tendência de transferirmos para os outros aquilo que não gostamos de ver diante do espelho. Ah, amada, como é amargo saber que aquilo que aponto fora, também, reside dentro. Amargo porque me refiro à um balaio de coisas negativas, enxergar as coisas positivas do mundo e saber que elas também fazem parte de mim, isso é de uma doçura imensa. Talvez por ser tão amargo é que projetamos para fora de nós, é melhor que o outro dê conta disso, não eu. Fulaninho é que é mentiroso. Assim, não preciso tomar consciência das mentiras que conto a mim mesma.
Projetar é humano. Homo proiecto. Fazemos isso desde os primórdios. Toda mitologia é uma projeção dos nossos dilemas humanos. Nossos Deuses, nossos salvadores, até nossos amores estão inebriados de projeção. “Não era amor, era projeção” poderia ser a letra da musica Cilada do grupo Molejo, lançada na década de 90. Quantos conflitos nas relações poderiam ser facilmente acolhidos se aprendêssemos desde muito jovens que fazemos isso de projetar inconscientemente. Acho que é por isso que o amor se torna uma jornada tão complexa, quem terá coragem de atravessar os muros das projeções? O que será que nos aguarda do lado de lá?
Projetamos no futuro aquilo que achamos que faltou no passado.
Como haveria de existir consciência senão fosse a transferência, a projeção e o espelhamento? De que cor pintaríamos o horizonte logo a nossa frente sem a paleta de dores do anoitecer que se põe atrás da gente?
A existência humana é algo profundamente intrigante. Entre tantas projeções e expectativas qual é o caminho que me leva para as minhas próprias escolhas? Quem sou eu, de verdade? É tão perturbador considerar essa dimensão da existência, que eu consigo entender quem se mascara através das Selfs. Não é curioso chamar Self esse tipo de fotografia que tiramos de nós mesmos? A nossa imagem é o nosso Self? Acho que nesse sentido freudianos e junguianos estariam em concordância. Rs.
Não conheço a trilogia que comentaste em sua carta, anseio por ver logo que possível. Mas ao te ler me remeteu a um dos últimos filmes que vi, recentemente, e que traduz um pouco de tudo isso que venho te escrevendo. Viste O mundo depois de nós?
Este filme foi lançado dezembro do ano passado na Netflix, causou um burburinho nas redes sociais tamanha a complexidade. Mas queria te falar sobre algo que me chamou a atenção que se conecta com o que escutei de ti. A maravilhosa Julia Roberts interpreta Amanda, uma personagem amargurada, que tenta transparecer uma personalidade agradável, mas que não se sustenta depois de três frases, logo vemos sua amargura se revelar não só em seu discurso, mas também nos vários tons de azuis de suas roupas. O azul, para os norte-americanos, representa essa dimensão entristecida que estou chamando aqui de amargura, lembra de Divertidamente? A tristeza era representada pela cor azul. E o que dizer do Blues? Essa melodia despertadora de tanta melancolia?
Pois bem, Amanda, é essa personagem amargurada, e que se encontra vazia. A relação dos personagens é permeada de vazios e projeções, até nós, telespectadores somos pegos projetando nossos preconceitos na família negra que faz parte da trama. Só quase no final do filme é que percebemos que ambas as famílias estavam falando a verdade, mas fomos condicionados a criar mais empatia pela família de Amanda, que é branca.
O que mais me chamou a atenção é para o fato de que passamos o filme inteiro na expectativa de algo grandioso, uma invasão extraterrestre, uma atmosfera apocalíptica, algo desse tipo, e, desculpa, mas vem aí um spoiler; no fim somos convidados a refletir sobre a fragilidade das nossas relações, dos nossos vínculos. A nossa tentativa de preencher nossos vazios com a tecnologia ou a comida, tão bem representada pela personagem da filha de Amanda. Tudo o que ela queria era ver o final de Friends, ela se sentia mais conectada com aqueles personagens do que com a própria família. Quando os diálogos adentravam uma atmosfera de maior intimidade algo acontecia pra desviar a atenção dos personagens, e não é o que vivemos hoje em dia? Quantas vezes nos ausentamos do olhar de nossos queridos pra dar aquela bisbilhotada no celular? Quanta presença deixamos de cultivar nos encontros pra nos desencontrarmos de nós mesmos numa timeline sem fim?
O mundo anda cheio. Talvez uma compensação para o fato de estarmos tão vazios por dentro.
Por aqui, Amada, tenho me preenchido de muita Filosofia, de sorrisos honestos e olhares sinceros. Testemunhar o infinito no meu consultório finito, de pouco mais de 9 metros quadrados, me parece um baita privilégio. Te contarei mais em breve!
Se preencha bem! Beijos, com amor!