Amanda Pinho
texto para 7a edição, novos tempos 2023
Quantas incertezas, pessoa amada que me lê, você carrega em seu peito? Quantas dúvidas permeiam seu pensamento? Quantas mágoas e decepções você tem na sua parede de memórias? Todas essas perguntas nos conduzem à uma jornada em busca da verdade. E poderíamos nos perguntar, agora, o que é a verdade senão essa tentativa de lidarmos com as incertezas, dúvidas e decepções da existência?
Antes do nascimento da racionalidade, a Deusa da modernidade, os povos originários respondiam seus questionamentos a partir de suas “representações coletivas” ao invés de explicá-los por uma causalidade racional. Por “representações coletivas” Lévy-Bruhl (1) entende ideias difundidas de caráter apriorístico. Sei que citei um autor polêmico acusado de racismo no campo da Antropologia e da Sociologia, por esta razão necessito fazer algumas considerações e reparações antes de seguirmos adiante.
A obra de Lévy-Bruhl se tornou amplamente conhecida de forma negativa: o teórico da “mentalidade primitiva” tornou-se exemplo de o quão preconceituoso e autocentrado o olhar do velho mundo sobre as populações originárias poderia ser. Márcio Goldman (2) aponta, em sua tese de doutorado publicado em 1994, que a percepção da obra de Lévy-Bruhl não vem de sua leitura direta, mas daquelas de segunda, terceira ou quarta mãos.
Tive conhecimento da existência de Lévy-Bruhl a partir de C.G. Jung, especificamente no texto intitulado O homem arcaico publicado em 1931. Jung não teve essa percepção negativa da obra e se entusiasmou a tal ponto de chamar o autor de autoridade no campo da psicologia primitiva, status que Lévy-Bruhl nunca se deu. A leitura de Jung foi a partir de sua perspectiva psicológica, e é também a partir dessa perspectiva que me apoio para a elaboração desse texto.
Dito isso, Jung propõe que o estranhamento sentido pelo homem branco europeu diante dos povos originários está no desconhecimento que este tem dos seus próprios pressupostos. A causalidade é um dos nossos dogmas mais sagrados. Nosso pressuposto racional é que tudo tem uma causa natural e perceptível. Estamos num universo que obedece a leis racionais. Não há lugar legitimo para forças invisíveis, ou os assim chamados poderes sobrenaturais. A hipótese do homem originário é o contrário, tudo tem sua origem num poder invisível. A causalidade natural é simplesmente aparente. Para usar o mesmo exemplo do texto: “Três mulheres vão ao rio buscar água, um crocodilo avança na mulher que está no meio e some com ela dentro da água. Na nossa concepção, diríamos que se trata de simples azar o fato de o crocodilo ter avançado exatamente na mulher do meio. E o fato de ser devorada pelo crocodilo é completamente natural, uma vez que crocodilos devoram ocasionalmente pessoas humanas”.
Os povos originários acharão absurda essa explicação e, com razão, pois a mesma explicação poderia ser usada para explicar o acidente não ter acontecido. O branco europeu não consegue perceber quanto sua explicação é falha. E este é o seu preconceito. O originário, diz Jung, é muito mais exigente. O que chamamos de acaso, para ele é arbítrio. A intenção do crocodilo era exatamente pegar a mulher do meio. Se ele não tivesse esta intenção, poderia ter avançado em qualquer uma das mulheres. E onde o crocodilo foi buscar esta intenção? Os crocodilos são animais medrosos que se assustam com muita facilidade, e geralmente não devoram seres humanos. Em comparação com o grande número de crocodilos, o número de pessoas devoradas por eles é muito pequeno. Portanto é um acontecimento inesperado e não natural que uma pessoa seja devorada por eles. Esse evento merece uma explicação.
Seria presunçoso de nossa parte afirmar que somos mais inteligentes que os povos da antiguidade – nosso patrimônio de conhecimentos, de fato, aumentou, mas não a inteligência. O nosso interesse se deslocou inteiramente para a materialidade da realidade; os povos originários preferiam o pensamento que se aproximasse mais do tipo fantástico. As representações coletivas dos povos originários estão impregnadas de mitologias. Todo o esforço que, nós modernos e/ou pós-modernos, aplicamos na ciência e na técnica, o antigo dedicou à sua mitologia. Partindo dessa diferenciação Jung (3) vai chamar nossa atenção para dois tipos de pensamentos: o pensamento dirigido e adaptado e o pensamento fantasia, movido por razões interiores, que corresponde a estados de espirito arcaicos. Não é preciso grande esforço para percebermos que a criança pensa de modo semelhante à esse tipo fantasia, ela anima seus brinquedos e vemos facilmente que vive num mundo mágico.
Você pode estar pensando que as tendências mitológicas das crianças são impostas pela educação. Será que os seres humanos alguma vez se libertaram totalmente do mito? Jung nos responde da seguinte maneira:
Vimos que o pensamento arcaico é uma característica da criança e dos povos primitivos. Mas sabemos também que este mesmo pensamento ocupa um amplo lugar no homem contemporâneo, sobrevêm assim que o pensamento dirigido cessa. Um enfraquecimento do interesse, um leve cansaço, é suficiente para anular a adaptação psicológica exata ao mundo real, que se manifesta pelo pensamento dirigido, e substitui-la por fantasias. Afastamo-nos do tema e seguimos o curso de nossos próprios pensamentos; se a desatenção aumenta, perdemos pouco a pouco a consciência do presente e a fantasia domina.
(Símbolos da Transformação § 32)
O que Jung está nos dizendo é que o ser humano se compensa através da fantasia. O pensamento fantasia é motivado menos por motivos conscientes do que inconsciente. Talvez por isso produz uma imagem do mundo diferente daquela que o pensamento dirigido produz. Progressivamente a cultura passou a adotar uma narrativa lógica passada através de argumentações que descreviam a realidade de maneira conceitual fazendo referência ao mundo natural. Essa mudança de narrativa, do mytos para o logos, marca o nascimento da nossa sociedade ocidental contemporânea.
A característica mais evidente dessa sociedade, além do avanço tecnológico, é o pensamento filosófico-científico, que tem como data de nascimento o séc. VI a.e.C. na Grécia. É claro que os Gregos herdaram conhecimentos de outros povos, como os egípcios e babilónios, mas eles fizeram algo extremamente novo ao colocarem a racionalidade sobre um fundamento teórico, chamado, hoje, de ciência racional. Vietta (4), em sua pesquisa sobre a racionalidade, descreve a abstração matemática como uma característica fundante da racionalidade. Seu inicio também nos remete aos gregos, “embora nosso sistema decimal com 9 algarismos e o 0 provenha da índia, intermediado pela matemática arábica”, é uma ideia pitagorica pensar que tudo, inclusive a linguagem humana, pode ser simbolizado a partir de números. Essa semente floresce na modernidade e produz a cultura do cálculo, pela qual somos regidos hoje.
“[…] tudo estará calculado e especificado com tamanha exatidão que, no mundo, não existirão mais ações nem aventuras”.
Dostoiévski (5)
Respire um pouco e tente responder a seguinte questão: O que é o mundo? E como você conhece o mundo?
Nós, enquanto sociedade ocidental, elegemos a ciência como forma de responder a primeira pergunta. A ciência no seu ideal é um campo de investigação humana que explica os fenômenos, prevê fenômenos futuros e controla a natureza de modo a produzir técnicas e tecnologias. De um lado tem um sujeito que conhece, com suas estruturas cognitivas, e de outro tem um objeto que é conhecido. Essa separação entre sujeito do conhecimento e objeto do conhecimento dá ensejo a noção de objetividade e subjetividade. E essa objetividade é assegurada porque tem um método, um autocontrole do pensamento, e uma linguagem especifica para descrever os fenômenos com precisão e exatidão. Nesse sentido a quantificação é a garantia que essa linguagem seja neutra, ou seja, retira-se tudo que dependa da subjetividade do pesquisador e só as propriedades mensuráveis de modo quantitativo são válidas. Isso pressupõe que a natureza é independente, regular, constante, de modo que é possível identificar a origem, as propriedades, as funções e os comportamentos dos fenômenos.
Esse ideal de objetividade formulou três concepções de ciência ao longo da historia. Aqui pegaremos carona com Marilena Chaui (6) para, de forma breve, passearmos por essas distinções.
A concepção racionalista postula seu modelo de objetividade na matemática. Parte de definições, postulados e axiomas, e é capaz de provar a universalidade de suas proposições. Segundo essa tradição, a ciência é um conhecimento racional-dedutivo e demonstrativo. Já a concepção empirista postula sua objetividade na medicina grega e na historia natural do século XVII. A ciência, nesse modelo, é um conhecimento racional-indutivo e experimental. Suas conclusões são sobre as propriedades dos objetos particulares que, pelo acúmulo de grande número de observações, são estendidas à generalidade de objetos do mesmo tipo.
Por fim, a concepção construtivista, típica do séc. XX em diante, postula seu modelo de objetividade no conceito de razão como conhecimento aproximativo. A ciência é vista aqui como uma construção de modelos explicativos aproximados da realidade, ao invés de representação exata. Para não tornar a leitura enfadonha não cabe citar aqui autores associados a cada uma dessas “escolas”, e suas possíveis ramificações, mas se você tiver curiosidade para saber mais, recomendo a leitura do livro da Chauí ou as aulas do clube de formação filosófica INEF (7).
Tanto o racionalismo, quanto o empirismo iniciaram na Grécia e perduraram até a modernidade. Porém, acho importante ressaltar que há uma diferença entre a ciência antiga e a ciência moderna. A ciência antiga, representada pela física Aristotélica, focava na qualidade da substancia no espaço. Com base na qualidade da substancia se estabelecia sua física e o modo como ela se comportava na natureza. As leis não eram universais, a natureza era categorizada hierarquicamente. A noção de permanência e mudança também eram central.
A ciência moderna, baseada na física de Galileu e Newton, abandona a noção de qualidade e se baseia na quantificação das propriedades dos corpos (massa, volume, velocidade) que são iguais, portanto não há hierarquização e o espaço é geométrico. As leis agora são universais. Não pense que tal classificação é amplamente aceita, há diversas discordâncias e outras classificações se tornam possíveis, mas não vou me deter nisso, quero apenas apontar as diferenças e convidar você para dar um salto na historia.
No final do séc. XIX e inicio do séc. XX aconteceu um debate na Alemanha que ficou conhecido como “A querela dos métodos”, a questão central desse debate ancorava-se nas condições de possibilidade do conhecimento. Wilhem Dilthey (8) propôs uma sistematização das diferenças entre dois tipos de ciência: as Naturwissenschaften, termo em alemão para ciências da natureza, e as Geisteswissenschaften, ciências do espirito. A esfera da natureza estava susceptível ao métodos já comprovados na ciência galileana, e a esfera dos objetos históricos ou culturais necessitava de um método próprio. Entre o humano e o natural, haveria uma diferença ontológica que exigia que métodos diferentes fossem empregados em seus estudos. Assim, o método das ciências da natureza baseava-se na explicação dos fenômenos através do modelo investigativo da física de Galileu e Newton, enquanto as ciências do espirito/humanidades tinham como fundamento a interpretação dos acontecimentos através da hermenêutica (9).
Permita-me resumir de outra forma inspirada na obra de Luc Ferry (10). Todas as civilizações humanas empreenderam, a seu modo, uma forma de conhecer o mundo. Esse empreendimento só é possível com o advento da consciência. A consciência da existência de si mesmo e, por consequência, sua finitude. Algumas civilizações encontraram respostas para essa angustia primordial em suas mitologias e construíram visões de mundo a partir delas. Para os gregos, para lidar com essa angustia, seria necessário compreender a ordem cósmica e, em seguida, imita-la pra então fundir-se nela e ocupar seu lugar e assim alcançar a imortalidade. Para os cristãos, a angustia da finitude seria “resolvida” a partir da fé em Cristo, o Verbo encarnado; em seguida obedecer aos mandamentos e praticar o amor em Deus para que pudesse entrar no reino da vida eterna.
O mundo moderno nasce com o declínio da cosmologia antiga e uma reavaliação das autoridades religiosas. Na Europa acontece uma revolução cientifica sem precedente. Ao mesmo tempo que abolia os princípios da cosmologia grega ao sustentar que o mundo não é acabado, hierarquizado e ordenado, mas um caos infinito; também fragilizou os princípios da religião cristã. A crença, presa ao domínio rígido que a Igreja impunha, começou a enfraquecer, de modo que os espíritos desorientados necessitaram encontrar por si mesmos, e talvez em si mesmos – daí falarmos em humanismo para designar esse período -, as novas referências para aprender a viver livremente. Os modernos não podendo se sustentar numa ordem cósmica, não podendo mais acreditar em Deus passaram a se apoiar em ideologias que fossem capaz de dar sentido à existência humana.
O cientificismo aparece dessa forma como uma religião de substituição, acredita-se que ao colonizar uma terra desconhecida, ao descobrir uma nova lei cientifica, ou inventar uma nova máquina para explorar a natureza justifica-se a existência humana e inscreve seu nome na eternidade. Repare que aqui não é uma questão de negar a ciência, mas de apontar a crença exagerada na ciência como a única forma confiável de explicação sobre as naturezas apoiada na objetividade e em um naturalismo acentuado.
Os europeus, aqueles da revolução cientifica sem precedente, viram nas terras por eles colonizadas as condições propícias para a expansão do conhecimento cientifico. Até então só a Igreja Católica, e seus representantes, seriam capazes de produzir e transmitir conhecimentos válidos. Contudo, a implementação da ciência em terras colonizadas não teve práticas diferentes daquelas da Igreja, suplantaram todos os saberes e práticas de outras sociedades e dos povos indígenas. Esse processo de colonização foi sustentado por esse cientificismo que precisa ser rejeitado, pois ele não reconhece o valor de outras formas de conhecimento que não a ciência ocidental moderna. É necessário a demarcação do discurso cientifico, precisamos advogar por um pluralismo epistemológico. Isso implica na compreensão da ciência como uma dentre as inúmeras formas de explicar os fenômenos naturais.
Vimos até aqui que o cientificismo se coloca em superioridade em relação à outros saberes com a justificativa de possuir um método que sustenta aquela tal objetividade. Esse método é chamado de empírico por se basear numa coleta bruta de dados da realidade mais imediata aos nossos sentidos. Porém esses dados coletados não respondem as questões mais complexas, ele é o inicio da investigação empírica, o dado por si só não diz nada. Ele precisa de um tratamento teórico para explicar os fenômenos dos quais foram retirados. E as teorias, pessoas amadas, são influenciadas por ideologias. Ou seja, aquela pretensiosa separação entre objetividade e subjetividade se torna impossível. Os dados objetivos são atravessados por fatores sociais, políticos, econômicos e psicológicos.
Quero aqui dar ênfase aos fatores psicológicos. Concordo com Jung que diz que a nossa psique é a grande responsável por todas as transformações históricas que a mão humana imprimiu à fisionomia do nosso planeta, e, é, ainda hoje, um mistério surpreendente. Em seu livro Tipos Psicológicos, Jung descreve a multiplicidade de apreensão dos fenômenos de acordo com os diferentes tipos e modos de conhecer. A ênfase é na influência que a personalidade e a experiência do pesquisador provoca no objeto pesquisado. A singularidade do pesquisador, ainda que se trabalhe em grupos, transforma de maneira concomitante ao fenômeno pesquisado. Dessa forma, Jung chama nossa atenção para a equação pessoal do pesquisador, ideia que transforma o dado em um mito, e uso a palavra mito aqui com a significação diferente daquela de representações coletivas do inicio, mito aqui é sinônimo de mentira, como habitualmente usamos essa palavra nos tempos atuais.
A noção do dado, usada tanto por empiristas e racionalistas, pressupõe uma dualidade, uma divisão entre o mental e o não mental, esse cenário exige a presença do dado para explicar como o conhecimento de algo exterior à mente se torna possível. Pra Sellars (11) “Trata-se de um conhecimento que não pressupõe outros conhecimentos, ele é autônomo, independente e não inferencial, e independe de processos cognitivos que os produza; apesar disso, o dado é indubitável e infalível”. Para compreendermos a influência da equação pessoal, proposta pela Psicologia Analítica, devemos considerar que a única experiência imediata é a psique, ou alma para os povos originários. Tudo que é possível conhecer é constituído de conteúdos psíquicos. Esta é uma ideia de grande alvoroço: a realidade psíquica.
Para entendermos o que é a psique, não podemos ceder ao preconceito materialista que faz dela apenas um epifenômeno cerebral. Podemos afirmar que só temos noção da matéria por meio de imagens psíquicas transmitidas pelos sentidos. Assim, podemos substanciar a critica feita à uma ciência positivista que se apoia em dados e estatísticas e desconsidera o psiquismo em sua totalidade, digo totalidade, pois psíquico não pode ser confundido só com a consciência do Eu, os conteúdos inconscientes fazem parte do nosso psiquismo como algo dotado de energia própria. Dessa forma, a ideia iluminista do eu como centro do psiquismo se enfraquece e nos deparamos com a dolorosa verdade de não sermos senhores em nossa própria casa, como Freud nos apontou.
Tentei te mostrar que a reposta para a primeira questão, o que é o mundo envolve um processo histórico e divergências substanciais. Gosto, especificamente, da critica de Jung pois nos possibilita uma compreensão de mundo a partir de imagens psíquicas, que vai ao encontro das representações coletivas dos povos originários, e rejeita a subjugação de sabedorias ancestrais em prol de um ideal de ciência positivista. Cabe agora pensarmos na segunda questão: como nós conhecemos o mundo?
Talvez você nunca tenha se perguntado o que é o conhecimento, ou como é possível saber se eu e você vemos o azul da mesma maneira ou se vemos cores completamente diferentes que chamamos pelo mesmo nome. Essas são perguntas que a epistemologia se propõe a responder. Diferentemente das ciências empíricas, que também se propõem a estudar o conhecimento, a epistemologia se preocupa com o conceito de conhecimento. Essa diferença entre a epistemologia e as ciências que estudam o conhecimento empiricamente ajuda a demarcar a tarefa tipicamente filosófica da epistemologia.
Vamos refinar esse questionamento e pensar sobre como conhecemos a nós mesmos. Normalmente confunde-se “autoconhecimento” com o conhecimento da personalidade consciente do eu. O eu, no entanto, só conhece os seus próprios conteúdos, qualquer pessoa que tem alguma consciência do eu acredita, naturalmente, conhecer a si mesmo. Não obstante desconhece o inconsciente e os seus próprios conteúdos. O vasto campo do inconsciente, não alcançado pelo controle da consciência, acha-se aberto e desprotegido para ser influenciado e contaminado por infecções psíquicas. Este tipo de contaminação se tornará possível no momento em que o indivíduo se massificar. No lugar da diferenciação moral e espiritual do indivíduo, aparecerá uma razão imposta de fora para dentro. A decisão moral e a conduta de vida são, progressivamente, retiradas do indivíduo que, visto como uma unidade social, será organizado e conduzido segundo a satisfação da massa.
O indivíduo, nesse cenário, possui uma importância mínima. Abre mão de seu juízo e confia o julgamento a uma organização, ou qualquer nome que se use para exprimir o principio abstrato de ordenamento. Consoante com Jung, um dos principais fatores da massificação é o racionalismo cientifico. Este retira do sujeito a sua individualidade e o transforma em uma unidade social e num número abstrato da estatística. Não é possível haver autoconhecimento baseado em pressupostos teóricos, pois o objetivo desse conhecimento é um indivíduo, ou seja, não é o universal que caracteriza o indivíduo, mas o único. Hoje já tornou-se consenso na medicina que um médico deve tratar uma pessoa doente e não uma doença abstrata.
Quando se trata da compreensão de um ser humano ou do conhecimento de si mesmo, deve-se abandonar todos os pressupostos teóricos. Para compreender a singularidade de um ser humano é necessário abandonar todas as leis e regras que estão no coração da ciência. Como ser social, o ser humano não pode permanecer muito tempo desligado da sociedade. Por essa razão só pode encontrar sua autonomia num principio transcendente, que seja capaz de relativizar a influência dominadora dos fatores externos. O indivíduo que não estiver ancorado na espiritualidade não conseguirá opor resistência ao poder fisico e moral que o mundo impõe sobre ele. O ser humano precisa da evidência transcendente de sua experiência interior, pois esta, como disse Jung, é a única possibilidade de se proteger da massificação.
Por fim, pessoas amadas, desejo que esse passeio histórico e conceitual nos sirva para refletir a importância de buscarmos uma terapêutica que nos conduza ao confronto com o inconsciente. Que o conhecimento de si mesmo, do mito pessoal, nos conduza a uma relação com a vida com menos controle e dominação. Que princípios como respeito e dignidade sejam os pilares para pensarmos nossa comunidade. Essa jornada de realização Jung nomeou de individuação. E por favor, não confunda com individualismo. Quando um sujeito se individua ele se reconecta com a natureza essencial da vida. Já um sujeito individualista se desconecta e reproduz as dinâmicas de exploração.
Não é necessário sermos religiosos para reverenciarmos a alma pulsante em cada ser vivente. Se a palavra alma estiver contaminada por alguma doutrina, chame como quiser. O mais importante é colocarmos nessa equação contemporânea algo mais que só materialidade. Os povos originários estão nos apontando para esse horizonte, ao reverenciarem o sol como astro divino e não apenas astro rei, mantém viva a chama do espirito que habita cada ser humano. Que é capaz de feitos extraordinários e quando inconsciente, também, é capaz de extinguir seus semelhantes e por em risco sua própria casa.
Estejamos despertos! Até breve!
“Ninguém se livra do fato de ser humano e não se deveria envergonhar por isso ”.
C.G. Jung
Amanda Pinho
publicado 12 de dezembro 2023
@anma_ar
Notas de texto
(1) Famoso filósofo francês que a partir de 1910 começou uma série de 6 livros sobre antropologia.
(2) Razão e Diferença: Afetividade, racionalidade e relativismo no pensamento de Lévy-Bruhl
(3) Símbolos da transformação. C. G. Jung
(4) Racionalidade – Uma historia universal, 2015
(5) Memórias do Subsolo – 6ed, 2009
(6) Convite à filosofia, 2010.
(7) www.portal.clubeinef.com / https://www.youtube.com/@istonaoefilosofia
(8) Introdução às Ciências do Espirito
(9) teoria, ciência voltada à interpretação dos signos e de seu valor simbólico.
(10) Aprender a viver – Filosofia para os novos tempos – 2007
(11) O mito do dado e a epistemologia de Sellars, disponível em: https://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/griot/article/view/706/422