Adolescência na contemporaneidade: saúde mental e social

Amanda Pinho

ensaio para 6a edição, nova jornada 2023

Das muitas revoluções no pensamento humano, a contribuição da Psicologia profunda, que considera a hipótese do inconsciente, tem um valor inestimável. Foi por meio da descoberta dos conteúdos inconscientes que chegamos à máxima “O eu não é senhor da própria casa” proferida por Freud ainda no século XIX. Ao longo do século seguinte, a Psicologia se desenvolve, e diversas teorias surgem na tentativa de explicar os fenômenos psíquicos e o desenvolvimento humano. Minha intenção aqui é refletir a adolescência a partir da Psicologia Analítica de C. G. Jung.

Confesso que, durante minha graduação, pouca atenção foi dada à adolescência. Muito se produz na Psicologia sobre a infância e a vida adulta, e a adolescência se mantém nesse limbo de transição. Ser adolescente hoje é ter nascido na era das redes sociais e dos smartphones. Ainda levaremos um tempo para reconhecer o verdadeiro impacto disso no desenvolvimento humano, mas não podemos negar que algumas mudanças são perceptíveis aos olhos atentos. 

Na Psicologia Analítica, entendemos a adolescência como o período do verdadeiro nascimento psíquico marcado pela diferenciação consciente dos pais e a irrupção da sexualidade. Antes disso a criança se acha mergulhada na atmosfera dos pais, num estado que Jung chamou de participação mística, em que os conteúdos inconscientes dos pais, muitas vezes, são revelados pelos “problemas” apresentados pela criança. O problema aqui está associado ao crescimento da consciência, é a ela que devemos a existência de problemas, que caracterizam a vida psíquica do homem civilizado. Até a adolescência, a vida psicológica do indivíduo é governada basicamente pelos instintos e, por isso, não conhece nenhum problema. Ele não conhece o estado de divisão interior, induzido pelos problemas. Esse estado de divisão só acontece quando um impulso se contrapõe a outro, quando aquilo que é uma limitação exterior se torna uma limitação interior. 

Para a grande maioria das pessoas, são as exigências da vida que interrompem repentinamente os sonhos da infância. Se o indivíduo estiver preparado, essa passagem acontece de forma suave, mas, se ele se agarra a ilusões que colidem com a realidade, certamente surgirão problemas. Esse processo de conscientização envolve momentos dolorosos, ser descolado dos pais e encontrar a sua própria tribo coloca o adolescente em confronto com a realidade, com os afetos e com a estética do mundo. É comum vermos adolescente em constante negação na tentativa de afirmar sua própria identidade. É necessário negar essa atmosfera parental da infância, suas crenças, seus valores e sua estética para encontrar um espaço de afirmação de quem se é, e, daí, surge a saga por pertencimento. Até aqui tudo bem, todos esses processos vistos sob um ponto de vista psicológico não acarretam nenhuma preocupação. Mas, ao acrescentar o fator social nessa construção da identidade do adolescente, algumas coisas merecem que nossa atenção se ocupe delas. 

Oferecemos aos adolescentes uma realidade virtual e um ciberespaço para performarem suas identidades ainda tão frágeis. O algoritmo das redes sociais funciona de uma tal maneira que as recomendações de conteúdos são oferecidas de acordo com as buscas que são feitas, e isso cria uma espécie de bolha que reafirma as opiniões e visões de mundo. Tudo isso para manter o sujeito o maior tempo possível navegando por ali. O contato com o contraditório fica escasso e quando feito é sobre uma névoa odiosa.  Isso coloca em risco a construção da própria identidade, que aos poucos se torna unilateral. As bolhas às quais pertencem se tornam amostras de mercado para que empresas os sobrecarreguem com propagandas que estimulam uma identidade baseada no consumo.

As gerações anteriores não conviveram com a velocidade que os nossos jovens estão expostos. O fluxo de informação na rede circula numa velocidade quase mágica, a conectividade constante rouba presença e estimula quadros cada vez mais ansiosos e depressivos. Precisamos, urgentemente, refletir sobre a saúde mental a partir de quadros analíticos impessoais e políticos, não apenas individuais e psicológicos. 

O pensador Mark Fisher relata, em seu livro Realismo Capitalista, sua luta contra a depressão e nos traz a compreensão da influência que o poder social exerce sobre o sentimento de inferioridade. Para o autor, o poder de classe foi o que mais o afetou, mas devemos considerar que gênero, raça e outras formas de opressão também funcionam produzindo o mesmo sentimento de inferioridade. Fisher aponta para o fato de a ideologia neoliberal usar como tática de dominação a ideia de “responsabilização”. Cada indivíduo é persuadido a sentir a sua pobreza, sua falta de oportunidade, e seu adoecimento psíquico como culpa somente sua. O indivíduo se culpará antes de culpar as estruturas sociais, isso é o que o psicólogo David Smil chamou de “voluntarismo mágico”, a crença de que cada indivíduo tem o poder de se tornar o que quiser. Crença essa que é estimulada pela lógica neoliberal de empreendedorismo, que seduz jovens a acreditar que é possível, por vias legais, se tornarem milionários antes dos 30.

É difícil negar que o dinheiro move nossa sociedade, pois existe um custo para nascer, para comer, para viver e até para morrer. O dinheiro, infelizmente, vem definindo os rumos da história do mundo. O dinheiro é um catalisador de desejos e afetos e, enquanto símbolo, regula a construção da realidade que vivemos. A cultura está a serviço do dinheiro. O capitalismo tardio depende de marketing, depende de uma sociedade repleta de imagens que se voltam para o consumo para alimentar determinados comportamentos e estereótipos. Se você não é um herdeiro, a única maneira de obter dinheiro é por meio do trabalho. No pensamento de Karl Marx, é a divisão social do trabalho que produz diferentes classes sociais. De um lado, o trabalhador que precisa vender sua força para receber um salário; do outro, os donos dos meios de produção, que exploram o trabalhador para obter lucros assombrosos. Se você, leitor(a), parar de trabalhar hoje e não tiver como custear sua sobrevivência, então pertencemos à mesma classe, a classe trabalhadora. 

De volta ao pensamento de Smil, ele vai dizer que o voluntarismo mágico é uma das causas do baixo nível de consciência de classe. Ser milionário, dono de um meio de produção, não depende exclusivamente da nossa vontade. Nosso sistema possui inúmeras barreiras que impedem a ascensão de classe. Uma vez trabalhador, seremos sempre trabalhadores. E isso não é um pensamento pessimista, é uma consciência da realidade tal como é oferecida pelo sistema capitalista. É grande o número de canais nessas plataformas seduzindo os jovens a comprar cursos sobre como “ficar rico’’. Vendem promessas ilusórias que confundem os jovens e os alienam da realidade e de si mesmos. 

Nos últimos anos, diversas mudanças foram feitas nas leis trabalhistas. Durante o governo Bolsonaro, o próprio Ministério do Trabalho virou uma secretaria subordinada ao Ministério da Economia. A alta da inflação, o salário mínimo no valor de R$ 1.320, alta taxa de desemprego, condições precárias e direitos usurpados tornam impossível viver com dignidade. Imagina um jovem que entra para esse mercado de trabalho com essas condições. Qual a perspectiva de futuro que ele vai ter? Some essa realidade material objetiva à cooptação da juventude realizada pela extrema direita, ao redor do mundo, com uma ideologia antissistema, que nega a política. O resultado será o que hoje já se define por “adultescência”, que corresponde ao prolongamento da adolescência e a dificuldade de entrada na vida adulta.

A Psicologia nos ensina que quem se protege contra o que é novo e regride ao passado está na mesma situação neurótica daquele que se identifica com o novo e foge do passado. Em princípio fazem a mesma coisa: mantém a própria consciência dentro de limites estreitos ao invés de construir um estado de consciência mais ampo e elevado. Isso inclui não só a consciência de si mesmo, mas também do mundo que o cerca e dos grupos dos quais faz parte. Quanto mais abandonamos a unilateralidade e nos aproximamos do meio da existência e conseguimos nos firmar em uma atitude pessoal em nossa posição social, mais cresce o sentimento de descoberta do sentido da vida e dos verdadeiros princípios e ideais de comportamento. 

O caminho de abandono da unilateralidade acontece pela educação. Cabe a nós adultos, familiares e educadores, educar nossos jovens para viverem a jornada da vida em sintonia com as leis da natureza. Há na juventude o momento da expansão, de explorar o mundo, desenvolver habilidades e ampliar a consciência. Em contrapartida, na segunda metade da vida, há o momento do recolhimento, a exploração se volta para o mundo de dentro e o inconsciente se prepara para tornar-se soberano, atingindo seu pico máximo na experiência da morte. 

Mas que educação é essa? Há tipos diferentes de educação? Qual o papel da família? da comunidade? Qual a responsabilidade do sujeito nesse processo? 

Jung nos legou uma compreensão profunda sobre a educação de jovens e adultos. Ele distinguiu três tipos de educação, o primeiro é por meio do exemplo, em que os pais, como citado no início, são a peça central, a vida não vivida dos pais se manifesta na criança, nesse sentido cabe aos pais o comprometimento de conscientizarem  seus conflitos emocionais, instintivos e morais para que seu exemplo seja positivo no desenvolvimento das crianças. O segundo tipo de educação é coletivo, a peça fundamental é a comunidade, a partir de suas regras, princípios e métodos, o indivíduo se torna parte da sociedade. Porém, devemos nos ater ao perigo de os excessos de regras abafarem o desenvolvimento das individualidades. E, por fim, a educação individual exige que as regras, princípios e métodos sejam subordinados ao objetivo único de permitir a individualidade especifica do sujeito. 

Se nossa metodologia educacional se mostra ineficiente quanto à ajuda que possa trazer ao jovem, em relação aos problemas da primeira metade da vida, devemos admitir que o indivíduo entra na segunda metade da vida inteiramente despreparado. Assim, carrega consigo as frustrações de sua juventude transviada. Quem os ajudará no difícil problema da transmutação dos valores que se apresentam, com tanta frequência, no entardecer da vida? 

Portanto, leitora amada e leitor amado, sei que você que me lê agora, provavelmente já está vivendo na segunda metade da vida, mas, como dissemos no primeiro parágrafo deste escrito, dentro de você existem muitos, e um deles é um adolescente que traz junto de si toda a paisagem emocional que o constituiu. É nossa responsabilidade cuidar de nossos adolescentes internos para não projetarmos nos nossos jovens nossos ideais e nossas frustrações. 

Qual o legado de valores e princípios que nossa comunidade, humana, está oferecendo aos nossos jovens? 

Amanda Pinho

publicado 31 julho 2023

@anma_ar

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