Sobre uma certa subjetividade contemporânea, portanto

Amanda Pinho e Nirvana Marinho

Carta 2 de Amanda para Nirvana, maio 2024

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Nirvana, amada … 

Tantos fios poderiam ser puxados a partir de sua escuta às minhas provocações sobre identidade. Mas quero me concentrar em duas coisas que me chamaram a atenção. Quanto tu falaste da dúvida, me pus a refletir sobre isso. Até porque nosso sistema de pensamento científico tem uma dívida para com a dúvida metódica que começa com Descartes e sustenta, em certa medida, até hoje a forma como pensamos o ‘eu’; a prova de minha existência está em meu pensar. Como costumo brincar com meus alunos, a mente, mente. E de mentira em mentira vamos construindo uma falsa ideia de quem nós somos. Se é que somos. Acredito que a dúvida nos impõe um realismo substancial. A realidade se impõe sobre nossas fantasias e utopias. Não que devamos deixar de sonhar, mas os pés precisam estar enraizados, principalmente em se tratando de uma época em que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, como disse Marx. Porém se só ficarmos na dúvida nos tornamos seres vacilantes, é necessário escolher e bancar as consequências dessa escolha. 

Daí surge uma dúvida, rs, há liberdade nessa escolha? Somos de fato livre? Os meus desejos são meus mesmos? Terminaste sua carta falando de liberdade desejada. E este é o segundo fio que quero puxar. Ainda mais quando esse tema da liberdade vem ocupando alguns debates públicos, como por exemplo, a regulamentação da internet e a famigerada liberdade de expressão. O que é isso que estamos defendendo quando dizemos ser a favor da liberdade? Ser livre para quê? O fato é que essa discussão gera muito debate e embate, por enquanto, eu fico na desconfiança, assim como Kant, que só há liberdade no dever, pois acredito ser raso demais achar que liberdade seja fazer o que se quer, ora, assim me torno escrava de um querer, um querer que temos visto ser influenciados por propagandas e anúncios, ou seja, quem fabricou esse querer? Que tipo de querer seria esse fora das influências sociais? 

Todas essas questões que joguei aqui me permeiam enquanto tento rastrear a constituição da subjetividade contemporânea, costurar todos esses fatores da nossa complexa realidade não é algo simples. Economia, política, filosofia, sociologia e psicologia são os retalhos dos quais tento construir minha colcha para aquecer meu corpo diante esse absurdo que é viver. Já reparaste isso? Quão absurdo é essa experiência? É uma loucura!! Livre ou não, com ou sem razão, a vida segue os dias colorindo nossa humanidade de contradições.  E voltaremos sempre a dicotomia do individual x coletivo. 

Deixo aqui a inspiração africana Ubuntu: Eu sou porque nós somos!

Beijos e sorrisos

Amanda

29abr24


As bolhas que não nos deixam ser nós mesmos

Amanda, você 

Na inspiração Ubuntu que você trouxe – Eu sou porque nós somos – me parece que abre uma fresta de percepção (essa expressão sempre faz isso comigo) dado nosso desafio de olhar, neste formato leve mas poderoso das cartas, de olhar para a subjetividade contemporânea. A quantas estamos? Como somos? Como tenhamos sido? Quais questões nos atravessam ou mesmo perfuram e deixam cicatrizes?

Tenho vivido pessoalmente um momento de transição – provável menopausa, alias uma das características desse período, estar mais na impermanência do que no diagnóstico – que tem me ensinado muito a olhar para o que somos e como temos caminhado. Somos nosso caminhar mas não necessariamente resultado dele, nem definido pelo passo dado. Somos uma composição visível e invisível aos olhos nus do que vemos ao longo da vida, mas nossos olhos vêem mais do que imaginamos. Somos olhos e pele. Somos ouvidos e cheiramos, intuitivamente. Somos instintos também de nós mesmos. Temos um sabor de nós mesmos, por vezes amargo, outros tão doce que apaixonante.

A subjetividade contemporânea tem deixado tudo isso ainda mais complexo. Atravessados de deep atravessamentos (metáfora à sujeira da deep web mas também a tudo que é profundo…), nosso celular tornou-se nosso exo-ego. Um ego externalizado e desorganizado, embora acreditemos que tudo está “sob controle”. E, enquanto isso, tantas identidades movem-se e nos movem para redefinir nossa posição no mundo.

Quero te contar uma coisa (vai ser uma homenagem ao teatro e uma tietagem à minha filha). Minha filha, Catarina, me levou para assistir uma peça de teatro, abertura de um festival de teatro de escolas, eminentemente particulares, com uma peça que tem sido um fresta de percepção incrível, chama-se “Catarina e a beleza de matar fascistas”, texto de Tiago Rodrigues, dirigido pelo Prof. Vicente Latorre, do Colégio Santa Cruz. Sim, algumas distopias no mesmo parágrafo: uma escola particular de alto nível, de origem católica e ensino ecumênico, que promove um festival de teatro, em 2024 na sua XVI edição, convidando outras escolas, a maioria particular, e monta uma peça recente, de tema desafiador, texto português com professor corajoso para bancar a percepção disso que, no título, já denuncia o tamanho da questão. Foram ameaçados. Persistiram. A peça é incrível e os estudantes surpreenderam com tudo que podia ser dito e não dito presente na tensão de cada cena. Precisamos congratular os corajosos. 

No entanto (ao fim desse parágrafo, espero me fazer entender bem porque a conjunção de oposição), ao fim da peça, abriram para perguntas e um diálogo rico entre professores, estudantes e platéia, muitas das perguntas foram para nos colocar no lugar de potência do texto, da dramaturgia. Evoé! 

(de novo) Entretanto, minha filha fez uma pergunta. Com todo cuidado e afeto (enquanto me orgulhava, temia, pois sei da potência questionadora dela), ela fez uma pergunta mais ou menos assim: “Meu nome é Catarina, sim, quando vi o nome da peça me identifiquei sim, e também estava preparada para uma peça difícil: “a beleza de matar fascistas”. Enquanto assistia a peça – na qual há várias Catarinas fiéis à Catarina primeira que matou um fascista como revolta ao feminicídio –  eu não sabia se me identificava com a Catarina que matou 7, a que matou 2, a que não tinha matado ainda pois não tinha atingindo a idade, a que deveria matar, nem mesmo se me conectava ao fascista, prestes a morrer. E fiquei me perguntando qual é nosso lugar aqui? Qual é o lugar de cada um aqui? Qual lugar, de fato, nos identificamos?”

Ele fez mais algumas perguntas retóricas e abertas. Mas eu sabia do que ela estava dizendo. Talvez alguns não tenham tomado para si, mas eu e ela tomamos.

Uma breve digressão faz-se necessária. Talvez muitos que lerão nossa carta, Amanda, se identifiquem também. Quando casada, tive uma vida de um lugar da sociedade, o das escolas particulares. Recentemente, devido a razões que perfuraram nossa subjetividade como família – eu, como mãe, eles como filhos – nossa escolha foi a escola pública. Escolha financeira que tem se tornado política. Política pois nosso lugar na sociedade tem sido sair da bolha. Com tudo que isso significa. E é muito. É matar um leão por dia. 

Catarina estava perguntando, lá na provocação da peça, como matar fascistas dentro da bolha? Como estar na bolha que deflagra a desigualdade e falar dela desde esse lugar? A quem “matamos” do lugar que ocupamos? Esse é um dos dilemas da Catarina da peça que decide outro destino para si mesma.  

Feito esse movimento longo, preciso te pedir para respirar comigo. Não estou falando do lugar de fala (Evoé, Djamila Ribeiro), nem do letramento essencial para nosso tempo contemporâneo de distopias. Estou falando de liberdade. 

Uma vez que possamos saber qual lugar estamos, qual lugar ocupamos, de qual colina estamos vendo qual parte ou pedaço do horizonte, temos outra tarefa: a de nos perguntar se estamos presos em uma bolha de percepção (provavelmente sim) ou se podemos nos mover para outras colinas.

Essa pergunta pode levar uma vida toda. Pode demorar até a menopausa. Ou se abrir numa jovem de 14 anos diante da potência do teatro e da fragilidade de uma bolha. 

Espero que possamos encontrar jeitos de nos mover, de colina a colina. De horizonte a horizonte. Isso talvez seja um pouquinho do que a liberdade quer dizer. Não estamos presos, nem a nós mesmos. A não ser que queiramos. E isso também é da ordem do desejo.

adorei essa rodada, Amanda, ainda inspirada, enfim

Nirvana

2mai24