Amanda Pinho e Nirvana Marinho

Carta 1 de Amanda para Nirvana, abril 2024

Para acessar Revista Escuta em formato de podcast, clique aqui

Nirvana, amada

Espero que esta carta a encontre em estado radiante. Fiquei muito feliz com nossa troca de cartas anterior e me sinto ainda mais feliz por estarmos iniciando mais uma rodada. Bom, amada, desde quando nos falamos pela última vez, muita coisa aconteceu por aqui, tanto em termos de experiências pessoais, como em desbravamentos intelectuais. Ando muito sensível às dinâmicas de relacionamento. Coisas como abusos, manipulações, agressões e as sequelas. Eu me sinto nesse grupo das pessoas sequeladas, que depois de sofrer um abuso, buscam reconstruir a própria identidade. Essa para mim é a palavra-chave identidade. Como é complexo esse processo de construção do eu, permeado por identificações, afetos, negações e a tal da projeção, que tanto falamos nas cartas passadas. 

Hoje é possível encontrar um vasto conteúdo sobre abuso, desde o físico ao psicológico, passando pelo emocional. Mas é difícil encontrar algo que ajude com o E depois do abuso? Não acho que manter-se na cristalização de vítima faz bem. Parece, inclusive, ser uma outra forma de abusarmos de nós mesmas. Vi recentemente o documentário sobre a história do João de Abadiânia, que se utilizou da espiritualidade para abusar das mulheres que buscaram o centro de cura Santo Inácio de Loyola. O documentário é muito sensível, e ouvindo as mulheres que deram depoimento falando sobre suas vidas me tocou profundamente, pois identifiquei ali coisas em comum, mesmo as experiências sendo bem diferentes. Mas o fato é que ser abusada envolve uma espécie de rachadura na percepção de si mesmo de quem sofre o abuso. É tão comum ouvirmos as mulheres denunciarem seus abusadores homens e rapidamente associarmos tal dinamismo ao machismo nosso de cada dia, ou mesmo a estrutura patriarcal da sociedade. Não acho que isso seja de fato ruim, mas sabe o que excluímos dessa conclusão? As mulheres que são abusadas por outras mulheres, sejam elas mães, chefes, ou suas parceiras. Sabemos que a dinâmica machista é introjetada, também, pelas mulheres, mas tenho me recusado a aceitar essa explicação simplista e reducionista ao gênero. Não que isso não seja um fator de relevância, precisamos sim descontruir o centralismo dos homens, mas será que estamos no caminho certo? Será que as discussões em torno de sexo, gênero e raça estão na direção de um novo horizonte de mudanças ou é só mais uma estratégia de dominação atuando de forma tão efetiva a partir do que se convencionou chamar Identitarismo? 

Na psicologia analítica temos como norteamento a expressão do si mesmo, que é diferente desse Eu egóico sobre o qual construímos nossa identidade, e essa dimensão do si mesmo é o que sobrou daquele mistério da vida que se pretendeu iluminar com a razão. Mas existem buracos negros na constituição do ser que a luz racional não chega, para fazer aqui uma analogia com o espaço, rs. Isso tudo me levou a refletir sobre a subjetividade contemporânea, que para alguns é pós-moderna, para outros é líquida, e para tantos outros é uma subjetividade neoliberal. O que todas essas hipóteses têm em comum é o fato de denunciarem uma visão de mundo centrada no indivíduo. E a construção dos valores que norteiam nossas escolhas em conjunto, como a política, por exemplo, se ancoram em uma identidade subjetivista que nega qualquer metanarrativa que tente explicar a nós mesmos a partir de um universal. Parece papo de filosofia escolástica né?! Mas poderia se dizer marxista também, rs. O fato é que essas narrativas que explicavam o mundo a partir de ideias universais perderam valor e o subjetivismo encontrou seu momento de brilhar. E de maneira prática isso afeta nossa forma de organização social, você deve se lembrar do que aconteceu durante a pandemia, onde muitas pessoas entendiam o processo de imunização como uma decisão pessoal e não coletiva. 

Nesse tempo também tive contato com as obras de Bruno Paes Manso, que escreveu A república das milícias e Fé e Fuzil, tem outras, mas essas foram as que eu li. E sem saber esse material se revelou uma pesquisa etnográfica sobre a identidade do cidadão periférico do brasil. Quanta preciosidade encontrei naquelas páginas. Eventos que pareciam desconexos e Manso, de maneira mansa, costura tudo e nos revela uma história brasileira cheia de crises de identidade. Toda essa discussão parece aquele velho problema, que parecia superado, sobre sermos uma tábula rasa e por consequência produto do meio. É a ocasião que faz o ladrão? Ou ela só revela? 

A psicologia parece oferecer uma saída para esse conflito, mas não estamos com muita credibilidade na praça, é mais rentável usar a psicologia para catalogar e enumerar indivíduos e então oferecer correções medicamentosas. Toda a capacidade reflexiva e dialética é descartada, até porque não são produtos que se encontra nas prateleiras do mercado psicológico. Já pensou? Tenho aqui esse pacote reflexivo para você instalar na sua vida, por apenas R$ 29,90. Embora eu saiba que uma quantidade absurda de cursos é oferecida com essa tentativa.

O inconsciente que nos livre!! rs

Gostaria de ouvi-la, amada, como você tem percebido essas discussões sobre identidade e saúde psíquica por aí? Como isso ressoa na sua percepção de si mesmo? E como é acompanhar a construção de identidade em dois adolescentes? 

Com carinho, Amanda


Identidade… Um antídoto e um vírus

Amanda, tão, tão, amada

Quanta identidade em suas linhas que me fizeram querer te abraçar, te dar um beijo e abrir uma garrafa de vinho! Sim, cartas são tão atrativas quanto cheias de imaginação. Ao te ler, milhões de coisas se passaram em mim porque esse tema, velho caduco, é sempre novo e faz uma faísca em nós. Identidade que nos faz e desfaz. Algo que é e não é mais. Algo que se constrói – na força da juventude – e se desfaz – no auge da maturidade. Um antídoto e um vírus.

Toca-me muito sua luz aos meus filhos adolescentes (17 já e quase 15) pois estou rodeada de hormônios que são uma montanha russa: é, não é mais. Posso, não quero mais. Vou, não vou não. Nesse meio tempo, encontro-me nos hormônios do que talvez seja o climatério (47 e indo). Ou seja, enquanto eles se fazem, eu me desfaço. O que nos assemelha é que estamos encontrando algo novo, diferente; ainda que, as vezes, a vida, o mundo, a internet diga – a eles: vocês conseguem! vocês precisam! vocês são “o futuro”; e a mim: talvez você não consiga! talvez você possa prescindir disso! talvez seu passado fique pra trás. Nós dizemos para nós mesmos: “somos tão jovens!….” (Ah Renato Russo).

E o que encontramos no meio do caminho? O que passou do limite quando estávamos com dúvidas sobre nós mesmos. A dúvida, tia do aprendizado (as vezes tão legal as vezes tão chata), pode nos confundir a tal ponto que nos entregamos ao erro. Um tropeço. Ali bem perto do abuso. Isso a internet também faz conosco: R$ 29,90 por uma jornada inteira de dúvida nas quatro paredes de um consultório em que o maior compromisso é conosco. Uma troca injusta que faz com que a visão centrada no indivíduo atrapalhe na verdade ele mesmo a fazer sua trajetória rumo a individuação.

Com certeza estamos numa luta contínua da era da informação em que a rapidez, a economia que desfaz identidades (quero retomar isso no próximo parágrafo) e uma certa cultura de apropriação parece nos destituir de uma identidade segura. Isso me faz pensar como as identidades desrespeitadas, desfeitas estão nos ensinando a recuperar o senso de si. 

Vou mais devagar:

Estamos num tal ponto sócio-cultural que todo tipo de crise de identidade é atravessada pela forma com a qual podemos entender nosso momento presente, histórico. Nossa visão do “nós” está se ampliando a tal ponto que o “eu” precisa de ajuda para ser “eu mesmo”. Mais do que nunca. E não acho que isso é “só” uma crise de identidade – terapia não seria só para encontrar a nós mesmos (embora muitos de nós estejamos perdidos sim). Mas para retomar o sentido do “eu”. O “nós” de uma sociedade da informação dissolveu fronteiras saudáveis entre mim e o outro; atravessa com muito agressividade nossas relações a tal ponto que o abuso foi normalizado e precisa completamente revisto; o que era “comum” rompeu a individualidade a ponto que a perdemos. Nosso senso de “eu” está dilacerado. 

Comentei que a economia vem desfazendo identidades porque fico sempre muito impressionada como ganhar dinheiro, ter status, investir na bolsa tem sido um aspecto ansiolítico de existência. Sempre foi. Mas a velocidade que isso atravessa lares, desfaz vínculos, disfarça sofrimento é muito abusivo. As pessoas nem se dão conta disso. 

Daí, a estratégia é se apropriar, ou naturalizar que “passar dos limites” não precisa fazer “tanto mimimi”. “Que exagero!” a gente pode escutar em alguns meios mais extremistas. Isso tudo é muito viral. Estamos num câncer da individualidade saudável.

Antídoto? Saber quem somos. E me referi a identidades desrespeitadas porque uma das muitas coisas que meus filhos tem me ensinado é como esse abuso começa. Na juventude, a educação, os “amigos”, as redes sociais não tem cumprido seu papel de promover espaços saudáveis de constituição dos “eus”. Tem sido mais um campo de batalha de muitos nós. Nós embrenhados. E são eles, aqueles que estão desfazendo os nós da história que podem nos ensinar a recuperar um senso (bom senso) do “eu”.

É mesmo a história do cidadão periférico. Do povo negro. Do povo indígena. Da comunidade LGBTQIA+. Do imigrante. Do ignorante. Do retirante. Do excluído. Do novo. Do diferente. Do humilde. Da natureza. Do que sempre esteve, ainda não visto em sua totalidade. Do oculto. Do inconsciente – “que nos livre!” (rs).

Assim tem sido. Identidade é agora um estado provisório, um trafegar, transitar. Identidade parece, para mim, cada vez mais, um estado de liberdade desejada. Menos de desfazimento ou ilusão. Identidade é ser “quem queremos ser”, porque, por exemplo, “a mulher é quem ela quer ser”. Não é mais “a” mulher. É o desejo de ser. 

Lembro-me que, provocadas por colegas bodytalkers, o Escuta se renovou ano passado assumindo sua vocação de terapias integrativas que dialogam com a psicologia, a psicanálise e tantas outras terapias energéticas porque é um grito de liberdade. Nosso modo de olhar também merece sair das quatro paredes do consultório. E essas cartas tem sido um exercício de liberdade. 

Como isso te chega, Amanda?

carinho

Nirvana