Sobre sentido e arquétipos

Nirvana Marinho e Amanda Pinho

Carta 2 de Nirvana para Amanda, março 2024

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Onda de “frio” no verão paulistano embora as turbulências permaneçam: qual é o sentido?

Querida Amanda, 

Agora te escrevo numa onda de “frio” no verão paulistano embora as turbulências permaneçam, até astrológicas eu diria (risos). O desconforto é humano mas deve ter algum sentido nisso né?… Será que nossos espelhamentos, nossas “Amandas” do filme que você comentou – sim, assisti, incrível, não? me levou para outra dimensão, literalmente – e nossos selfies digitais podem nos mesmo mostrar parte desse sentido? Em qual medida sabermos de nós mesmos deixa tudo mais turbulento ou é justamente o que traz sentido? 

Sim, calma. Mais devagar. Primeiro, vamos atender pedidos (rs, a carta vai ser mais bem humorada né – talvez porque a esteja escrevendo no calar da noite). A trilogia a que me referi é aquela do diretor Richard Linklater com os lindos Ethan Hawke e Julie Delpy tem os filmes ‘Antes da Meia Noite’ (‘Before Midnight’, EUA, Grécia, 2013), ‘Antes do Amanhecer’ (1995) e ‘Antes do Por do Sol’ (2004). Sugiro a quem quiser, e a você, amada Amanda, assistir na ordem. Faz sentido. Dá sentido. Já imaginei assistir (de novo) em outra ordem…. Como seria o ontem se soubéssemos do amanhã? 

Depois, vamos cumprimentar esse afeto todo em te escrever, receber sua carta, repetir e repetir nessa edição 8 do Revista Escuta, cheia de verão, de filme e, ah!, cheia de áudio. Como é bom ouvir as cartas. 

E ainda, vamos dizer que escrever e falar, ler e escutar são espelhamentos natos da nossa linguagem. Assim, nos sentimos vivos. Algum sentido surge de repente, na escuta, ou numa linha. E parece que quero te falar disso: do sentido das coisas

As vezes, nos perguntamos porque fazemos terapia. Noutro, porque somos terapeutas (você se pergunta isso?). Ou ainda, nos maravilhamos nos metros quadrados do consultório, ou nos maravilhamos com a coincidência poética que a vida clica ali, na nossa frente. 

Uma das coisas que mais me surpreende é uma (ou a!) resposta à pergunta que não tem nenhuma licença retórica: por que faz sentido? 

Quando faz sentido, não questionamos, temos uma espécie de certeza misturada com um risco que emerge em nós quando nos deparamos com algo que, estranho ou conhecida, faz sentido. Eu sinto bem aventurança, muitas vezes. Eu sinto, inclusive na clínica, na escuta, no corpo (do BodyTalk ou das Constelações ou da Astrologia – minhas áreas de paixão/atuação), um estado de graça quando algo “clica” e acontece. Quando algo faz sentido. 

…. Acho que a expressão “implementar” do BodyTalk tem outro sentido para mim quando leio este parágrafo. 

Fazer sentido não é dar sentido; não é atribuir significado (necessariamente); é uma suspensão. Algo que surge, por vezes como um gêiser, outras vezes como um sopro. Nos bichinhos, quando atendo BodyTalk para Animais, é um suspiro. O sentido que se faz me parece ser o bônus diante de tanto ônus que comentamos quando nos confrontamos com o espelho de nós mesmos na experiência do viver. 

Selfies não são assim. Anestesiam o sentido, não acha? No retrato digital, muitas vezes temos a sensação que o espelho talvez nem esteja lá – para te incomodar? – que, na verdade, estamos mascarando o quese vê. Apesar disso, sabemos que, tudo que vemos, de alguma forma, nós buscamos sentido. Isso é cognitivo. Mas nossas emoções, ah elas, são nossos dribles

Com as emoções criamos o sentido. As vezes, inventamos um (ou muitos). Com os pensamentos, justificamos o sentido. E é dessa forma que, me parece, acabamos por perdê-lo. O sentido se esvazia quando não conhecemos bem nossas estratégias nas quais nossos sentimentos se justificam no jeito que pensamos. Conseguimos dar razão – e não propriamente sentido – ao nosso sentir e pensar com muita força. Daí entra em cena, um espelho como um gremelin, tudo se multiplica ou amplifica diante de nós. Mais uma chance na qual o sentido se esvazia. 

Fico pensando que o vazio, as patologias, como nos liquefazemos atualmente tem a ver com uma tática vencida de “perder sentido”. Uma guerra psiquíca travada por nós mesmos para nos convencermos que “perder o sentido” das coisas faz sentido (desculpe o trocadilho, meio ruim). Convencemo-nos que ter razão, controlar as emoções, justificar os pensamentos nos faria mais… poderosos? aceitos? incluídos? faria a dor sumir? Assim, o sentido foge de nós. Não entendemos. 

Aí me parece que temos uma chave da nossas últimas cartas: embora nossos campos de saber expliquem tão bem a beleza do espelho (milenar inclusive), inato do humano e suas relações, das projeções e transferências, não seria mais sobre abrir os olhos mas sim como podemos lidar melhor com o fechar os olhos

Explico. Atribuímos nossos espelhamentos parte inato das relações. Sabemos que construiremos uma realidade a partir disso. Faremos com alguma certeza: vim desse lugar, tive esses pais, absorvi isso da cultura, acho isso dele ou dela, etc. Ainda que saber das certezas possa mais dizer sobre mim do que sobre o outro (adoro a expressão: “Quando Pedro fala de João, sabemos mais de Pedro do que de João”), acho que estamos sendo convocados a fechar os olhos. Isso não é para ignorar o espelho. Mas para ver em outro direção: o que nossos olhos abertos insistem. Não é sobre o outro; é sobre mim… sobre esse Eu/Self que fotografo dentro de mim

Daí, fechar os olhos dá outro sentido ao espelho. O que vemos? Faz mais sentido que tais “fora” estejam mais falando para nós: “olhe dentro”, do esteja falando “se justifique”. Faz mais sentido que olhar dentro – isso inclui fazer terapia e ser terapeuta – para especializarmos nossos espelhos … internos! (além dos risos do início, acho que essa carta é sobre reticências). 

Amanda, nossas cartas e sua poesia sobre o espelhamento, também sobre a projeção e transferência em alguma medida, tem sentido quando eu fecho os olhos. 

Com a meditação, o que inclui ser capitã das minhas turbulências, sinto que estou acolhida dos perigos. Sinto que tudo faz sentido, ainda que não tenha explicação ou eu não entenda. 

Uma carta cheia de brevidades (e talvez descompassos), te convido a fechar os olhos comigo e escute essa carta. 

Com amor, 

Nirvana


Carta 2 de Amanda para Nirvana, março 2024

Tempos azedos por aqui… dilemas de sentido parecem fazer parte

Nirvana amada,

Recebo suas doces palavras em tempos azedos por aqui. Justifico assim a minha demora em responder. Não sei se necessariamente é uma demora, mas esse conflito com o tempo, por vezes, nos impõe uma névoa de culpabilidade, parece que estamos sempre em débito. Quando não o tempo nos escapa. Em certa medida o tempo nos serve como este apontador de destino, nos orienta para uma direção que pode ter sentido ou não. Mas talvez, amada, a direção seja mais importante que o destino. Ou essas coisas são tão entranhadas que formam uma dicotomia necessária: direção e sentido.

De qualquer sorte, esses dilemas de sentido parecem fazer parte da humanidade desde seus primórdios. Te contei que tenho me envolvido muito com mitologia né?! Descobri um universo apaixonante inspirada pelo estudo dos arquétipos. E se me permite um breve esclarecimento a respeito de arquétipo, gostaria de apontar algumas angústias. Esse conceito tem caído nas redes e muita bobagem tem sido dito. E pra nós da psicologia analítica, é um conceito caro pra ser banalizado e surrupiado por esse mercado de consumo psicológico. 

Desde Platão essa ideia vem se desenvolvendo no nosso pensamento ocidental. E o que é proposto por Jung nada mais é do que apontar para padrões de comportamento tipicamente humano. E assim poderíamos pensar a busca por um sentido como um arquétipo. Um movimento na vida típico do ser humano. Assim como é típico da aranha fazer teia e da abelha produzir mel. E com isso quero desmistificar essa ideia de ativação de arquétipo, não se ativa um sentido na vida, em verdade o encontramos ao longo do caminho, e temos que reconquistá-lo sempre e de novo. Afinal de contas, o que dava sentido a sua vida no início da juventude talvez não seja o mesmo que agora. Pois até as fases da vida são heranças humana, embora haja diferenças a depender da civilização. Mas encontraremos rituais de passagem em cada uma delas, como revela os estudos de mitologia comparada. Na nossa sociedade me parece não ter sobrado muito desses ritos, eu a vejo dessa forma, uma sociedade sem rito, sem mito, desregulamentada logo sem sentido e direção. Aliás, pegando carona na crítica de Baumann, o sentido de existir está no consumo. Não se produz mais cidadãos, se produz consumidores que vão alimentar uma ideologia do ter e não do ser. E essa busca de sentido, me parece indicar nossa relação com o espírito e não com a materialidade das coisas. 

Qual o sentido de sermos quem somos? Para onde o passar do tempo nos leva? 

Me lembro quando era adolescente ser confrontada com a pergunta: o que você quer ser quando crescer? Na escola inúmeros testes vocacionais eram passados para descobrirmos o que fazer da vida. E nunca se invertia a pergunta: O que a vida quer de mim? 

A segunda possibilidade me parece gerar menos solidão, já que o sentido é construído junto da vida, avaliando as precondições da própria existência, enquanto responder o que eu quero da vida, me lança sozinha num mar de possibilidades que talvez não seja correspondente às condições dadas pela vida, e que facilmente pode ser influenciada por terceiros. ‘Faça o que te dar mais dinheiro.’ ‘Siga a mesma carreira dos pais.’ De continuidade a empresa da família.’ São só alguns exemplos. 

Uso esse exemplo profissional por ser de imenso valor na nossa sociedade capitalista, visto que dependemos de dinheiro para sobreviver. Tudo isso pra te dizer que o sentido da vida, o sentido de nossa existência, está atrelado a nossa interioridade e as questões do espírito. 

Tenho brincado com meus alunos sobre a construção de uma escola de auto desconhecimento, ensinaria aos alunos como criticar essa dimensão do Eu, para quem sabe conhecermos o si mesmo. Aquela dimensão profunda, inconsciente que nos guia por entre as sincronicidades da vida e nos aponta a dialética existencial. 

Consigo entender perfeitamente nossa sina por segurança, linearidade e solidez, mas isso não pode ser experimentado sem seus complementos fundamentais, a saber a insegurança, o embaraço, e a flexibilidade. E assim poderíamos dizer que o sentido é não ter sentido. Brincadeira deliciosa que Tom Zé genialmente usou na sua música ‘Tô’, que dizia que estava iluminado pra poder cegar, explicava pra poder confundir e confundia pra esclarecer. 

Essa corda bamba de dicotomias exige muita presença, amada, daí a nossa ânsia por um roteiro pronto pra que não tenhamos que nos aventurar no balanço dessa corda, que nos acorda e nos tira dessa inércia projetiva. 

Durante um tempo em minha vida alimentei a ideia de sentido na experiencia do grande amor, acho que nós mulheres somos influenciadas a isso ne?! Mas enquanto perseguia esse sentido pequenos amores passaram despercebidos. E fui me moldando de ansiedade a cada frustração nas relações. Hoje cultivo os pequenos amores e se a vida por acaso quiser me agraciar com a grandeza, talvez eu o saiba reconhecer no tempo. 

Os gregos tinham uma divisão muito interessante para se relacionar com o tempo, Cronos o tempo das coisas, tudo cronometrado. Kayrós o tempo das oportunidades, o pintavam como calvo invertido, ele tinha cabelo só na frente da cabeça, isso pra que saibamos agarrar Kayrós de frente, porque depois que ele passar não teremos como agarrá-lo. Esse tipo de tempo não depende da nossa vontade, é aquele tempo que não percebemos passar quando estamos preenchidos de sentido, seja realizando uma atividade, conversando com uma pessoa querida, ou qualquer que seja a situação que nos envolva tão plenamente. E Aion, o tempo da vida, esse mistério coloridor da experiencia humana, a soberania da vida sobre nossas ilusões de controle. 

Me recordei de uma poesia da Viviane Mosé sobre o tempo, uma preciosidade que vale a pena ser partilhada aqui nessa reflexão sobre tempo e a vida. Diz Viviane: 

Quem tem olhos pra ver o tempo
Soprando sulcos na pele
Soprando sulcos na pele
Soprando sulcos?
O tempo andou riscando meu rosto
Com uma navalha fina
Sem raiva nem rancor.
O tempo riscou meu rosto com calma
Eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença.
Acho que a vida anda passando a mão em mim.
A vida anda passando a mão em mim.
Acho que a vida anda passando.
A vida anda passando.
Acho que a vida anda.
A vida anda em mim.
Acho que há vida em mim.
A vida em mim anda passando.
Acho que a vida anda passando a mão em mim.
E por falar em sexo
Quem anda me comendo é o tempo
Na verdade faz tempo
Mas eu escondia
Porque ele me pegava à força
E por trás.
Um dia resolvi encará-lo de frente
E disse: Tempo,
Se você tem que me comer
Que seja com o meu consentimento
E me olhando nos olhos
Acho que ganhei o tempo
De lá pra cá
Ele tem sido bom comigo
Dizem que ando até remoçando.

Desejo, Nirvana amada, que essas reflexões a encontre doce, que apazigue os tormentos de quem nos escuta. E que nossos olhares se somem ao tempo para nos direcionar na conquista de novos sentidos. 

Um cheiro, com amor,

Amanda