Maria Fontes
texto para 7a edição, novos tempos 2023
Desde 2020, quando fomos empurrados “cada um para seu quadrado” ficou nítido que não apenas precisamos uns dos outros, mas que somos formados muito daquilo que partilhamos uns com os outros. Estar trancados em casa, às vezes sozinhos, outras vezes com pessoas da rede familiar foi possível por algum tempo. Logo buscamos chamadas de vídeos, cursos e até festas online em plataformas que permitem a presença coletiva.
O próximo estágio foi perceber que precisávamos de auxílio qualificado para atravessar aquela realidade, até então fora do imaginário das possibilidades de vivência de cada um de nós. Foi mais do que uma torcida por vacina ou tratamentos eficientes. Foi um aplauso coletivo a estruturação da ciência e das novas tecnologias disponíveis. Aqui me reservo o direito de relembrar a história com este recorte, mas sem esquecer a dualidade e a onda negacionista que atravessamos. Mas meu foco é trazer uma linha de raciocínio que conduza ao entendimento geral da importância da vida e da saúde.
O convite aqui é uma reflexão sobre o caminho de desenvolvimento humano que nos proporciona recursos que apoiam o corpo a vencer doenças, vírus, bactérias, inflamações, etc. Aqui assumo como premissa a importância do campo científico como base fundamental deste desenvolvimento. Não quero adentrar, aqui, nos debates sobre a ética e os interesses que pautam pesquisas, mas ressaltar como há um caminho em desenvolvimento que nos apoia em crises e eventos extremos.
Neste mesmo campo científico, estamos acompanhando o alargar do debate que assume a subjetividade humana como componente estrutural da saúde. Assim, a presença do corpo emocional, psíquico, social e cultural aparecem escancaradamente na composição dos aspectos de uma boa saúde.
Após uma, duas, três ondas de covid as falas dos pesquisadores e médicos começaram a apresentar preocupações com a saúde mental da população. Estávamos trancafiados em rotinas isoladas e auto-centradas na tentativa de dar conta de sobreviver e sem perspectivas de quanto tempo precisaríamos viver daquela forma.
Ao escrever publicamente tenho me referido mais e mais à pandemia de 2020 porque fatos extremos registram e evidenciam transformações, sejam elas latentes ou emergentes da própria situação.
Um dos pensadores que me auxiliam a refletir sobre o mundo é Yuval Harari, historiador que apresenta inúmeras reflexões sobre sobre este momento humano. A complexidade do que vivemos diante do crescimento da inteligência artificial, a utilização de Big data, epidemia de fake news, manipulações autocráticas, intolerâncias e polarizações, além de emergência climática, liberalismo, desigualdade de gênero, raça e várias nuances do processo de desenvolvimento da sociedade humana que tornam impossível uma avaliação única e uma resposta única como saída efetiva.
Somos compostos e compomos essa complexidade. Somos agentes que atuam, agem e reagem ao entorno. Somos Seres Sociais e Históricos, atravessados constantemente pelos elementos de nossa era.
Como existir nesse cenário com tantas variáveis sem nos desorganizarmos? Como existir no mundo complexo e interconectado e manter um prumo pessoal balanceado?
Observamos uma crescente valorização da saúde e bem estar psíquico como elementos fundamentais para a qualidade de vida. Facilmente, na internet, nos deparamos com frases como “privilégio é ter saúde mental”. É importante notar que o conceito de saúde é dinâmico e vem se transformando durante o tempo. Ele também muda diante de diferentes culturas e sistemas de crenças que carregam interpretações variadas. Em essência, a saúde é um estado multifacetado e multidimensional que vai além da ausência de doença. Para a OMS (Organização Mundial de Saúde) o conceito engloba os aspectos social, econômico, cultural, ambiental, político e até espiritual. Afinal, somos seres sociais compostos por inúmeras camadas que se inter relacionam constantemente.
Diante de tamanha complexidade, os espaços voltados para a promoção de saúde ganham destaque. Lembro que o primeiro ano de pandemia, exigiu adaptação da prática de consultório ao online e também, adaptação a um fluxo crescente de pessoas em busca de auxílio. Foi um momento de reconhecimento da importância do bem estar subjetivo para a promoção e manutenção da saúde. Importa o índice glicêmico, mas para isso é preciso trabalhar com os traços de ansiedade da pessoa.
Um passinho adiante e esbarramos com a camada social. Como estar bem com tanta barbárie ao redor? Já ouviu falar em ansiedade climática? E Burnout materno? E sobre os impactos diferenciados de doenças e baixa estima devido a racialidade? Que tal pensar nos traços de pensamentos intrusivos em alguém que vive perseguição religiosa? Ou a falta de pertencimento de pessoas com sexualidade destoante da heteronormatividade?
A complexidade do mundo interage com nossos consultórios.
Teyolía é o nome dado a uma entidade anímica nahuas (povo indígena mesoamericanos), que transcende o sujeito e o conecta com todos os outros seres. De acordo com a perspectiva dos povos originários de diversas regiões do globo (não é uma generalização vazia, mas uma constatação presente nos estudos e leituras das cosmologias que a antropologia possibilita) a separação dos mundos e dos indivíduos é quase impossível, ou, quando presente, é comumente mediada por entidades divinas.
Entendo que estou dialogando quase que exclusivamente com pessoas sul americanas, urbanas e provavelmente terapeutas. É pouco provável compartilharmos a cosmologia de culturas ancestrais, baseadas na ligação com a natureza e seus mensageiros. Ao contrário disso, somos em nossa grande maioria, treinados em técnicas americanas, européias ou de alguma parte do norte global que também não dialogam com nossa realidade imediata. Até mesmo nossas concepções dos conceitos como sujeito, subjetividade, inconsciente e até mesmo como tratamos a ancestralidade são noções incorporadas de abordagens criadas em outras realidades, com elementos culturais dos locais em que foram desenvolvidas.
Interessante notar como algumas noções são mais facilmente assimiladas do que outras!
A isso, pensadores brasileiros como Ailton Krenak, Nêgo Bispo, Geni Nunes, Daniel Munduruku, Mano Brown entre outros, chamam de colonização das mentes, do pensamento e das ações.
Aqui, formalizo o convite para pensarmos nossos espaços terapêuticos. Mais além disso, convido para uma postura pessoal de análise (no sentido analítico mesmo) das nossas posturas enquanto terapeutas.
Se os consultórios vêm ganhando destaque no apoio e promoção da saúde, será que minha prática clínica se atualiza junto com as complexidades da sociedade? Consigo observar a composição da dor daquele que me procura para além das técnicas em que sou treinada? Minha clínica considera os recortes sociais de raça, gênero e classe? Ou pratico o silenciamento de desconfortos e incômodos com a proposta de reencaixar o indivíduo em uma forma pronta de como devemos pensar e sentir para estamos bem?
No decorrer dos últimos anos fui convocada a reinventar minha prática de consultório. Durante anos de formação e especialização em técnicas integrativas fui me tornando muito precisa em observar e aplicar técnicas a partir da minha intuição estruturada. Estruturada a partir de onde? De treinamentos que entendem a mente, o corpo, as emoções e até o campo energético a partir de uma visão que não inclui as cores, os cheiros e os sabores do local e da cultura onde cresci. Será que a forma de estruturar minha intuição não ganharia tônus se associada a elementos da cultura afro-ameríndia sul americana?!
Não entenda mal, não estou negando a influência da visão do norte global, é importante reconhecer os elementos trazidos pela colonização que confluem com os entendimentos que partilhamos enquanto seres feitos e criados na realidade do sul global. E ainda assim, é importante reconhecer que práticas e técnicas desenvolvidas pelo norte global (para além de carregarem um bocado de apropriação cultural de locais por eles colonizados) trazem direcionamentos específicos, para entendimentos específicos, e também, com interesses específicos.
Para mim, foram anos investindo tempo e recursos em cursos, vivências e atualizações técnicas que proporcionaram estar na linha de frente na prática integrativa que vinha desenvolvendo. São técnicas e maneiras de observar a vida que auxiliam a observar uma gama imensa de aspectos que compõem o Ser. Na trajetória em práticas integrativas desenvolvi um curriculum farto de cursos que comprei (literalmente paguei por eles, em dólares muitas vezes) mas que não considera a um tanto de outros elementos que ficam a cargo da sensibilidade e disponibilidade de cada terapeuta incorporar na observação e escuta.
O que quero ressaltar é que as técnicas integrativas de saúde podem estar assentadas em entendimentos de realidades distantes do público brasileiro. A começar pelo próprio conceito de saúde e bem estar que foca na resolução de desconfortos, liberação de crenças limitantes, ou ainda, alinhamento de camadas pré estabelecidas. Por mais holística e integrativa que seja, qualquer técnica propõe observar, escutar e tratar o indivíduo a partir de um certo viés.
Percebo que precisamos de um ponto de partida para pensar nossas práticas terapêuticas. As abordagens integrativas são de suma importância no processo de pensar saúde e acompanhamento de indivíduos. É comum que quando começamos a adentrar este universo uma abordagem nos leve a outra, mais um curso e mais uma técnica… e assim, gabaritamos o check list das novidades de cada momento. Isso me parece incrível, pois amplifica o leque do terapeuta. Este é o convite deste texto: independente de nossa prática/ técnica/ abordagem de consultório, que possamos seguir nos instrumentalizando em nossa observação e escuta do indivíduo.
Yuval Harari comenta que, mesmo enfrentando desafios para a sobrevivência e manutenção da vida humana ao longo dos séculos, agora estamos diante do momento mais crítico para a humanidade. A complexidade com a qual estamos lidando não apresenta uma solução ou explicação única. As saídas precisam ser construídas, estudadas e observadas a cada situação. Para tal, partilho aqui o entendimento que venho construindo em minha prática pessoal de consultório: o letramento social como base para as observações e a escuta em consultório.
O letrar-se é o saber ler as informações. De maneira livre, vou tratar o letramento social como o conjunto de estudo, atualizações e informações sobre o mundo e a sociedade que nos possibilitam ler as entrelinhas das situações, os recortes que compõem o cenário diante de nós.
O letramento social pode ser encarado como um exercício sociológico e tem como fundamento trazer para nossa prática clínica a observação dos nossos próprios filtros enquanto pessoas fruto de determinado meio/cultura/família/religião/classe social/gênero/cor da pele e etc. Para assim, desenvolvermos uma postura analítica agregadora e não apenas a partir de nossas próprias vivências ou das diretrizes de nossas técnicas.
Ser capaz de escutar o outro/paciente requer mais do que técnicas e sensibilidade. A escuta tem poder altamente organizador, carrega em si um potencial extremamente curador. Então, quais camadas da subjetividade do indivíduo estamos possibilitando a se organizarem a partir de nossa escuta?
Ao repensarmos e atualizamos nossas práticas diante das transformações históricas e desafiadoras que estamos atravessando, alguns dos elementos que o letramento social do terapeuta podem agregar a prática clínica são:
- reconhecer fatores contextuais relevantes e a forma como impactam o indivíduo;
- compreender as nuances de linguagem utilizadas pelo indivíduo advindas de sua vivência social agrega entendimento do que é dito de forma verbal e não-verbal;
- ao reconhecer e respeitar as diferenças culturais/sociais/ambientais/gênero/raça podemos criar ambientes terapêuticos mais inclusivos e adaptados às necessidades específicas de pessoas e grupos (étnicos, religiosos, ou outros).
- uma abordagem centrada na cultura (não necessariamente culturas exôticas, mas a cultura familiar, o local de origem no imenso território do nosso país, as influências e etc) do indivíduo pode promover maior engajamento no processo terapêutico e fortalecimento do vínculo;
- os profissionais letrados socialmente podem adaptar suas abordagens para atender necessidades específicas de diferentes indivíduos e grupos facilitando a comunicação, que é ponto crucial nos processos terapêuticos e de cuidado com a saúde.
Vale ressaltar que estas reflexões são fruto de estudos constantes, inspirados pelo Consultório Antropológico (@consultorio.antropologico, vale a pena conhecer). Não há uma forma pronta de como caminhar nesse tecido mutável que é a ESCUTA de um outro Ser como ferramenta de transformação. Mas é fato que somos parte de um todo que nos transforma e estamos também transformando esse todo.
O destaque que os consultórios e clínicas recebem, neste momento humano, explicitam a importância deles na elaboração do mundo, no impacto do mundo nas subjetividades e, por consequência, no processo de individuação. Nesse sentido, há uma crescente postura de profissionais da psicologia, psiquiatria e até da medicina que advogam em prol da inclusão de uma abordagem amplificada da escuta apoiada pelo letramento social dos profissionais, como parte da conduta ética em saúde. Esta ética destaca o respeito e prioridade das especificidades de cada pessoa atendida, em detrimento de técnicas e abordagens. Isto para que possamos reduzir a incidência de escutar a dor deslocada do cenário que a constitui e a reforça no cotidiano, minimizando a super responsabilização do indivíduo diante de elementos que ultrapassam a sua possibilidade de ação individual.
Nos grupos terapêuticos em que transito é comum dizermos que a “saúde é apoiada pela consciência”. Neste sentido, quando “ampliamos a consciência” para o social, o cultural, o ambiental, o econômico e ect, estaríamos então ampliando o chão onde a saúde se apoia? Deixo essa reflexão com desejo de debates sinceros.
Afinal de contas, uma das coisas que trouxe a humanidade até aqui foi a capacidade adaptativa a cada momento. Mais além disso, foi a capacidade de discernir quais adaptações eram necessárias realizar para seguir existindo. Esta é uma das características da cultura: ser viva e em movimento. Espero que a cultura dos nossos espaços de atenção à saúde possa encontrar flexibilidade suficiente para se adaptar às necessidades deste momento humano.
Maria Fontes
publicado 12 dezembro em 2023
@fontes.mandala