Pertencer ou não pertencer, eis a questão!

Maria Fontes

ensaio para 6a edição, nova jornada 2023

Somos os “moradores” do nosso tempo, como tais, nos deparamos com questões muito específicas. É aqui e agora que encontramos os caminhos para nossa alegria e saúde, ao mesmo tempo em que também tropeçamos em obstáculos que podem obstruir o fluxo vital e evidenciar sofrimentos e adoecimentos. 

Cada época possui sua paisagem social. Como seres humanos, transitamos por cenários físicos, contamos com recursos materiais e imateriais, acessamos informações e saberes, utilizamos as tecnologias disponíveis, desenvolvemos relações humanas e também as relações entre os indivíduos e todos os recursos. 

Para este artigo, pretendo tecer observações despretensiosas, no máximo para provocar reflexões, sobre o cenário que envolve a juventude, em 2023. 

Dentro dessa juventude, temos a categoria mais específica que são adolescentes. Meu foco recai sobre as “pessoas humanas”, consideradas pela cultura ocidental urbana como complicadas e difíceis.  De saída quero explicitar que acho uma “zoeira” definir as pessoas saindo da infância e ainda longe de entender o mundo e se entender no mundo adulto, como seres complicados e chatos. Vamos combinar de abolir os comentários sobre os corpos em transformação e o estigma de aborrecentes? 

Ainda vale ressaltar que estou recortando, para esta reflexão, a realidade de adolescentes da classe média, urbana e, invariavelmente/majoritariamente, branca (sim, precisamos falar e refletir sobre a branquitude!). São adolescentes que contam com estruturas e acesso a recursos de uma paisagem social privilegiada. 

Vale lembrar que o relatório mundial sobre índices de qualidade de vida divulgado pela ONU em 2020, apresenta o Brasil na posição de 8º pior país em desigualdade de renda, atrás apenas de nações no continente africano. E ainda, de acordo como o relatório divulgado pelo World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais) em 2021, o Brasil permanece como um dos países com maior desigualdade social e de renda do mundo, em que os 10% mais ricos no Brasil ganham quase 59% da renda nacional total. 

Sugiro tomar uma respiração e pensar nos números colocados: 10% de pessoas administram 59% da renda total de nosso país. Essa é a dura realidade do nosso país.

Este segundo estudo se refere ao Brasil como “um dos países mais desiguais do mundo” e diz que a discrepância de renda no país “é marcada por níveis extremos há muito tempo”. O resultado é o contraste entre bolsões de pobreza e riqueza no país.

Como parte dos privilégios nos bolsões de riqueza, está o acesso à internet.

Durante os tempos mais críticos da pandemia da Covid-19, a internet foi apontada como um elemento que aproximou pessoas e possibilitou a manutenção de laços e afetos. Foi também o recurso que nos manteve informados (desinformados também), com acesso aos meios de trabalho, acesso à cultura e ao lazer.

Estudos diversos ao redor de todo o mundo vêm mostrando que o período pandêmico acelerou nossa íntima e cotidiana relação com o universo digital. Acelerou nossa entrada em uma era movida a telas e redes invisíveis de wi-fi a tal ponto que muitos adolescentes não conseguem conceber passar um mês de férias na praia se não houver cobertura 4g ou um bom wi-fi. Conectar-se a algo ganhou novo sentido prático. 

Jovens da classe média com acesso ilimitado à internet estão construindo e explicitando um modus operandi específico de uma geração. Temos denominações como a geração Z (ou seria Y?… enfim), a turma que nasceu já na era digital. Não conheceu o mundo analógico, sem aparelhos celulares, aquele mundo onde pesquisar informações era uma aventura por bibliotecas, livros e enciclopédias densas e pesadas para carregar na mochila. 

Esta mesma geração, em 2023, depara-se com a volta a uma “normalidade” (o que é normal?) da vida social, pós-pandemia, quarentena, isolamento, escolas on-line, mortes (muitas mortes), informações truncadas (muitas informações distorcidas), vacinas e tudo aquilo que cada um de nós sabe que viveu. O foco aqui é que muitas crianças adolesceram no cenário de isolamento e com todo aquele caos social, incerteza e medo. 

Vale ressaltar que tecnologias, como a internet, são recursos da paisagem social do momento. Carregam em si a ideia de facilitar a vida e trazer benefício a seus usuários. No entanto, especialistas acompanham mudanças de hábitos e os impactos que a internet vem trazendo à vida de todos os usuários e apontam para mudanças na vida social e saúde mental.

Em 2019, a PeNSE (Pesquisa Nacional de Saúde dos Escolares, IBGE) já revelava que 1/3 dos adolescentes já se sentiam tristes na maioria das vezes, ou sempre tristes, e este cenário foi agravado pela pandemia. Crianças e adolescentes estão adoecidos e adoecendo psiquicamente. Parece ser consenso entre os especialistas de várias partes do mundo que problemas com a saúde mental dos adolescentes está aumentado.

Essa realidade também se manifesta em seu consultório?

Hoje vivemos a era das informações instantâneas. Sabemos que uma criança possui acesso a mais informações do que figuras históricas que definiram paisagens e impérios em suas épocas. Como mãe de um adolescente, sinto que os 28 anos de diferença entre nós foi tempo suficiente para modificações na percepção de mundo, algo diferente de choque geracional. Mesmo que eu seja moderninha e acompanhe os hits do momento, os jogos on-line e a velocidade de obsolescência das novidades, percebo que há algo diferente de um choque geracional. O choque existe, debatemos ações, formas e valores que, como mãe, avalio necessários existir, mesmo ele achando “cringe” e ultrapassado. 

O que percebo é quase uma descontinuidade da maneira que aprendi a viver nesse mesmo mundo. Existe uma distância de realidades, um olhar permeado por tanta informação que formata um jeito diferente de ver e estar no mundo e, até mesmo, na forma de valorar a existência. 

Ouso dizer que vivenciamos um gap geracional. Uma fenda entre gerações. De um lado, pessoas que conheceram um mundo analógico e transitaram com mais ou menos adaptações ao mundo digital. Enquanto, de outro lado, temos os nativos digitais: jovens cujos brinquedos e brincadeiras foram mediados por telas, aplicativos e jogos online, que transitam por um número tão grande de informações que minha mente “cringe” não consegue compreender como organizam as ideias. 

Trago esse cenário pessoal como forma de me juntar às mães de adolescentes que chegam ao consultório e também a profissionais que estão disponíveis a pensar esta realidade. Quero deixar explícito que não tenho estratégias prontas de como orientar o desenvolvimento de um ser humano, seja sob minha guarda, seja em acompanhamento terapêutico. Estamos diante de um cenário diferente, onde os símbolos, os signos e ritmos desse momento são únicos de tal maneira que estamos todos tateando formas de acompanhar e dialogar.

No podcast Assunto (Saúde mental de adolescentes: riscos e ajuda – O Assunto | Podcast on Spotify), a psicanalista Vera Iaconeli traz a informação de maneira bem direta: os transtornos mentais em adolescentes estão de fato aumentando. Ela ainda completa dizendo que: 

“A adolescência é um período de sofrimentos, adaptações, de crescimento e de transformações. Então, ela é um período de vulnerabilidade psíquica. Mas nem sempre a vulnerabilidade psíquica desemboca em adoecimento. O que temos é um incremento desse adoecimento. Ao invés de resolver o sofrimento próprio dessa fase turbulenta da existência, o que está acontecendo é que estes jovens estão apresentando sintomas, ou causando distúrbio não apenas consigo próprios, mas também atos de violência e outras formas de expressar a não solução do sofrimento próprio dessa época da vida.”

Neste momento, nos deparamos com um cenário específico que vem aparecendo em nossos consultórios, nossa comunidade e nos noticiários trágicos da TV. A violência fomentada por discursos de ódio, intolerâncias e comunidades radicais chegou aos jovens, encontrando uma porta para atingir esses seres humanos em transformação, em um mundo onde familiares e responsáveis ainda não dominam estratégias para orientá-los.

 Crianças e adolescentes parecem ser alvos, não apenas das mudanças dos tempos expressas em músicas, jeito de vestir e falar, mas também de informações manipulativas quando estão transitando nas “terras sem leis” das redes sociais, sem a proteção ou “guiança” de pessoas aptas a distinguir e orientar. Algo de muito errado não está certo!

Sabemos também que as redes sociais e os vídeos curtos são estimulantes, que promovem altas descargas de dopamina no cérebro, a ponto de transformar seus usuários em cérebros dependentes dessa química. Uma das características da dependência química é a letargia e o desinteresse por atividades, relações e cenários no mundo não digital. Você conhece algum adolescente apático, que não gosta de fazer nada? Que prefere ficar no quarto a qualquer outra atividade?

A adolescência também é um período de vida em que os indivíduos estão buscando referenciais de como ser e estar no mundo. Já foi característico dessa fase andarem em bando e possuírem um linguajar próprio. Afinal, a tal busca por identidade passa por construir pertencimento em grupos, locais e atividades de cada turma. 

O sentimento de pertencer é algo fundamental para a vida humana. Somos seres sociais. Nascemos e crescemos graças a grupos familiares e estruturas sociais que possibilitam encontros com outros seres humanos. A partir daí, teremos um cenário favorável ao desenvolvimento de nossas potencialidades individuais manifestas na vida social. É pertencendo e participando da vida coletiva que desenvolvemos muitas das características e contornos que nos tornam seres humanos saudáveis.

Na Psicologia Comunitária, trabalhamos com um conceito fundamental para a saúde humana: o sentimento de comunidade. Ele é definido como o sentimento de pertencer a uma coletividade maior, de ser parte de uma rede de relações de apoio mútuo, disponível e confiável. Esse sentimento – ou senso de comunidade – é um aspecto psicológico do ser humano, que descreve uma sensação genuína de conexão e pertencimento a um determinado grupo de pessoas.Neste princípio, pertencer não é opção, é fator fundamental para o desenvolvimento humano. 

Esse senso de comunidade é composto por quatro elementos, sintetizados por McMillan e Chavis em 1986, que são:

. partilhar símbolos que promovam a sensação de fazer parte, como: usar mesmo tipo de roupa, trabalhar em uma mesma empresa, morar na mesma cidade, torcer para o mesmo time de futebol ou ainda, no caso real de adolescentes, estudar na mesma escola.

. exercer influência mútua, ou nas palavras de Sarason: “uma reconhecida interdependência com os outros, uma disposição para dar ou fazer algo pelos outros, e o sentimento de que se faz parte de uma estrutura estável e mais confiável”.

. suprir as necessidades uns dos outros: ao longo da vida estamos sempre buscando grupos que melhor nos atendam em nossas demandas pessoais e sentimos pertencimento onde somos atendidos. Este elemento é forte na constituição do sentimento de comunidade, gerando um sentimento de que as pessoas são importantes umas para as outras, tendo confiança de que as necessidades dos membros serão atendidas por meio do compromisso de estarem juntos.

. emoções compartilhadas: vem por meio de histórias compartilhadas. Alguns autores colocam que é o “elemento definitivo para comunidades verdadeiras”. Essas histórias em comum, ou a participação coletiva, ou pelo menos a identificação com essa história, é que são a real cola que liga um grupo e que lhes dá a sensação de pertencimento a algo maior que eles mesmos.

De maneira geral, o sentimento de comunidade impacta na percepção subjetiva do bem-estar e da satisfação com a vida, tanto nos aspectos internos ou psicológicos (em suas dimensões afetiva e cognitiva) como nas interações externas ou psicossociais com as outras pessoas e com o ambiente. O bem-estar subjetivo envolve dimensões como satisfação global com a vida, felicidade e sentimento de pertença. O sentimento psicológico de pertencer a uma comunidade representa o nexo de união entre o individual (psicológico) e o coletivo (social). Está relacionado a apoio social, territorialidade, ambiente social e identidade. O sentimento de comunidade promove o fortalecimento da identidade, da autoconfiança e das relações sociais, contribui para o aumento da qualidade de vida e do bem-estar pessoal, combate sentimentos de solidão e anonimato. Quanto maior a percepção do suporte social recebido, maior é a qualidade das relações sociais, a autoestima, a satisfação vital e, consequentemente, o sentimento de comunidade. 

Pesquisas com adolescentes demostram que a ausência de sentimento de comunidade num bairro, medida pela ausência de influência da escola e da vizinhança na comunidade estudada, leva à solidão e ao isolamento social. 

O fortalecimento do sentimento de comunidade pode ser um processo facilitador da participação dos adolescentes na vida social. E, dessa forma, se compor um antídoto para os sentimentos de anomia, alienação, isolamento e solidão que potencializam dinâmicas destrutivas da vida das pessoas e  empobrecimentos das sociedades. 

Hoje, o uso de internet faz parte diária da paisagem social, o que traz efeitos, não apenas no adoecimento psíquico, mas na própria formulação do sujeito e seu crescimento para tornar-se um adulto na nossa sociedade. Os especialistas já falam abertamente do impacto dessa variável no comprovado efeito da relação do uso da internet com o aumento de depressões, ansiedade, pânico, suicídios, burnout… Alguns especialistas falam em uma epidemia de saúde mental fragilizada nos jovens. Os diagnósticos são diversos, e ainda pouco sabemos sobre o efeito dessa dinâmica. Crescer e se desenvolver a partir de telas pessoais, nick names, avatares e encontros virtuais pode nos entregar indivíduos com baixo sentimento de pertencimento e/ou pertencimentos a grupos com pensamentos de desestruturação de vínculos sociais. O cenário que acompanhamos é de desvalorização do convívio humano neste período de formação e desenvolvimento cerebral, orgânico e social dos seres humanos.

Você percebe o aumento de jovens e adolescentes em sua prática clínica? Identifica neles elementos desse senso de comunidade?

Enquanto escrevo, observo uma menina no parquinho infantil da minha quadra, aqui em Brasília. Ela está brincando, tomando sol e movendo seu corpinho de um brinquedo a outro. Quase penso que estou escrevendo algo incoerente, beirando o catastrófico. Fiquei observando alguns minutos. E então completei a cena: ela está sozinha! Não há outras crianças. A menina brinca no balanço por um tempo. Muda para o escorregador, escorrega algumas vezes, pula amarelinha no desenho do chão e até experimenta a gangorra sem um par na outra ponta. 

Não marquei quanto tempo fiquei observando, mas algo de triste foi me povoando, uma melancolia naquele parquinho com apenas uma criança. Depois de um tempo ela desiste da brincadeira no parque e vai se sentar ao lado do adulto e pega o celular.

E a pergunta existencial que move este artigo retorna: onde estão os adolescentes? O que estão interessados em fazer e viver? Quais são suas dores e seus vazios? Como estão construindo o caminho entre a vida individual e familiar em direção ao contexto coletivo e social? Será suficiente pertencer ao mundo virtual para o desenvolvimento humano?

Enquanto terapeutas e agentes da transformação social, como podemos contribuir para a construção do pertencimento dos adolescentes? 

 Enquanto indivíduos deste tempo, como podemos contribuir para a construção e/ou atualização dos elementos para um senso de comunidade saudável?

Se os jovens são o futuro da sociedade, não seria papel dos “não tão jovens” auxiliar a construir um senso de comunidade, integrando a diversidade inclusive desta geração digital?

Por enquanto o que tenho a oferecer são perguntas e mais perguntas para ampliar nossa reflexão. Refletir é apenas uma tentativa de sair de modelos prontos e participar da construção de pontes neste gap geracional que impacta toda a sociedade.

Reflexões são maneiras de interagir e transitar de uma realidade a outra, aproximando diálogos e formas de estar no mundo. Talvez, as reflexões nos encorajem intimamente a participar da construção de elementos, que, partilhados com os adolescentes, nos auxiliem a vivenciar o sentimento de comunidade e até, a comunidade em si mesma. 

Afinal, pertencer ou não pertencer é sinal de saúde e qualidade de vida dos indivíduos (jovens adolescentes ou não) e do coletivo.

Maria Fontes

publicado 31 julho 2023

@fontes.mandala

Referencias bibliográficas:

1. Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia. Niños y niñas en un mundo urbano. Estado mundial de la infancia 2012. http://www.unicef.org/spa nish/sowc2012/pdfs/SOWC-2012-Main-Report-LoRes-PDF_SP_01052012.pdf

2. Casas F, Bello A. Calidad de vida y bienestar infantil subjetivo en España ¿Qué afecta al bienestar de niños y niñas españoles de 1o de ESO? Madrid: Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia; 2012. 

3. Elvas S, Moniz MJV. Sentimento de comunidade, qualidade e satisfação de vida. Anál Psicol 2010; 28:451-64.

4. Alcantara SC, Abreu DP, Farias AA. Pessoas em situação de rua: das trajetórias de exclusão social aos processos emancipatórios de formação de consciência, identidade e sentimento de pertença. Rev Colomb Psicol 2015; 24:129-43. 

5. McMillan D, Chavis D. Sense of community: a definition and theory. Am J Community Psychol 1986; 14:6-23. 

6. Sarason S. The perception and conception of a community. In: Sarason S, editor. The psychological sense of community: prospects for a community psychology. San Francisco: Jossey-Bass; 1974. p. 130-60. 

7. Prezza M, Constantini S. Sense of community and live satisfaction: investigation in three diferente territorial contexts. Journal of Community & Applied Social Psychology 1998; 8:181-94. 

8. Pretty G, Andrews L, Collet C. Exploring adolescents’ sense of community and its relationship to loneliness. J Community Psychol 1994; 22:346-58.

Links de pesquisa:

scielo.br/j/csp/a/JvWLDN5W443z6X7zyVbD5JL/?format=pdf

Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA

Home – WID – World Inequality Database

IDH: Com avanço lento, Brasil cai 5 posições em ranking da ONU (uol.com.br)

4 dados que mostram por que Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, segundo relatório – BBC News Brasil

Estudo mostra que pandemia intensificou uso das tecnologias digitais – Sistema de Bibliotecas (furg.br)

Estudo mostra que pandemia intensificou uso das tecnologias digitais | Agência Brasil (ebc.com.br)

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