Jovem, revolução do olhar

Nirvana Marinho

ensaio para 6a edição, nova jornada 2023

Numa noite fria de São Paulo, estive em um sarau de poesias e músicas entre pessoas da minha geração e muita, muita gente jovem. Senti-me tão à vontade, jovem e velha, inserida e fora do meu tempo, observando, observando a pulsão da vida na arte. Talvez seja porque foi perto do dia de falecimento de Rita Lee. Talvez porque aqueles jovens tocavam todo tipo de música, tocavam muito bem, curtiam muito uma autenticidade única. Talvez porque estivesse finalizando este ensaio para a Revista Escuta e estava muito tocada por isso que chamamos de juventude.

Olhar com coração para a juventude é necessariamente se despir de qualquer pré-concepção da adolescência ou das crenças sobre “mudar” para realmente observar a transição sob uma nova perspectiva potente, esta sim de inocência e força. Este ensaio vai falar sobre olhar. A juventude é um constante ir em direção ao novo, ao misterioso ou desconhecido, a pulsão inevitável do crescer, ainda que isso signifique dor, dúvida ou inconstância. É um encontro explosivo entre ser inocente e ser forte.

Jovens na escola dando de ombros para as regras. Jovens em casa no quarto fechado. Jovens no celular (repita essa frase muitas vezes). Jovens carregando o silêncio. Recentemente, durante a escrita deste ensaio, mais frases poderiam começar com “Jovens…” (e acontecimentos inesperados), não pela rebeldia, mas sim pela surpresa de um ambiente familiar, escolar, social em que o lugar deles está na corda bamba. Jovens têm espelhado dores no mundo atual, como a alienação, a estagnação – estas caindo em queda livre na depressão clínica ou na ansiedade diagnosticada – ou mesmo na atitude destemperada diante de tanta injustiça de que eles também estão expostos. Seja qual bolha você se encontra – sócioeconômica, racial,  gênero (e aqui não há uma equivalência de altura tampouco de justiça de seus espaços de fala, são bolhas muito, muito distintas) — parece que estamos confinados num presente de marmota: “tudo parece igual e ruim”, “tudo parece inadequado”, “o momento presente não traz promessa de futuro”. Nossa atualidade é uma mistura de esperança escondida – não seríamos mais o “país do futuro” – e de insistência cega: “não desista mesmo que isso te custe sua saúde mental”. A doença que acomete os jovens é uma variação cruel de um mundo que vem se desconstruindo ou se desfalecendo, depende do ponto de vista que olhamos. E nesse mar de pessimismo, no mal dos tempos, precisamos falar de juventude.

Onde estaria a paixão desenfreada, a libido pulsante, o corpo vibrando pela vida? Estamos assistindo uma influência midiática que parece não permitir a espontaneidade, a naturalidade. Ser saudável pode até parecer artificial. Esse cenário não precisa ser fatídico, mas se olhamos a onda de acometimento psíquico dos jovens, da idade mais preliminar até a juventude mais tardia, é, no mínimo, preocupante. Estamos adoecendo a pulsão de paixão pela vida que mora na juventude.

Adoecer essa fase da vida tem implicações filosóficas e também ético-políticas. A sociedade costuma se preocupar com as crianças que, de fato, precisam ser asseguradas do seu estado natural de proteção e crescimento. E os jovens? Em qual tipo de sociedade é possível garantir alegria, espontaneidade, revolta sob os moldes de transgressão que move mudança e descoberta com arte, com cultura, com o senso de responsabilidade sendo constituído? Essas perguntas como pauta social podem ser refletidas no âmbito interno: qual seio familiar, escolar, comunitário é capaz de acolher o jovem em toda sua pulsão e com afeto e acolhimento? Como podemos garantir mais conhecimento, mais socialização com uma percepção menos cruel da vida adulta e mais mantenedora de esperança?

Embora nosso propósito seja falar do âmbito interno de todos nós – onde o “estar em terapia” nos faz ficar mais seguros –, nosso intuito é observar o entorno, o social, o comum – onde estão as doenças que fatigam o interno, o dentro, o ser. “A consciência é tudo que há”, então um trabalho integrativo e sistêmico de terapia precisa ser capaz de olhar as interferências, os moldes que estabelecem sistemas de crenças, os movimentos que perfazem o dentro-fora, o tempo todo, a ponto mesmo de nos confundir: penso assim porque vivo assim ou vivo assim porque me moldaram assim pensar? Sinto medo de mim mesmo ou do mundo?

Esse olhar para o contexto sócio-cultural é, em si, uma atitude ético-política que dá a nós, terapeutas, o compromisso de observar em todas as direções. Dito isso, convidei à minha tela mental – e ao seu olhar agora – dois autores, além de um vasto promenade que tenho feito com autores que admiro nas redes sociais: Rita Von Huthy e Alexandre Coimbra Amaral, entre outros que ensinaram a aprofundar conceitos no meio digital. Mas esse contexto bibliográfico e também digital são referências que passam ao largo daquelas do dia a dia: relatos dos meus filhos, que estudam em escola particular, de 13 e 16 anos, sobre o cotidiano do jovem supostamente engajado, da bolha paulistana da Zona Oeste que sofre com a dor alheia, em silêncio. E qualquer semelhança com sua região, cidade ou contexto não será mera coincidência. Não tenho intenção de falar de outro lugar que não seja o que ocupo, embora me sinta atravessada sempre, mas de chamar atenção que esse acometimento psíquico-emocional é mais amplo que possamos imaginar. 

Vamos perceber com Agamben como somos seres comuns. Para o filósofo italiano (A comunidade quem vem, 2013), qualquer (um qualquer um, bem Caetano) é aquele que é (um) “tal qual é” e, só por isso, está no comum, e é comunidade. “Ser-qual” identifica o seu pertencimento a este ou aquele conjunto para “ser-tal”, ou para seu próprio pertencimento. Ou seja, enquanto pensamos que “o” define alguém –  o moço da classe média, a menina da escola pública, o cara da internet, a mina influencer –,  na verdade é uma ilusão achar que alguém é tão especial, único que não seja, na verdade, um tipo (filosófico) qualquer, uma vez que pertence a um comum. Muitos destes acima inclusive o compõe –  o moço da classe média que estuda na escola privada, a menina que estuda na escola pública que tem outra condição social, o cara da internet que influencia pessoas como a mina que o “seguem” (alias um verbo interessantíssimo para a gente pensar). Somos “o” porque somos “uns” (avisei que era bem Caetano). 

O pior estado, nesta condição agambiana de comunidade, é aquele de estar no limbo.  E os cancelamentos tem provado isso nas redes sociais. Diferentemente de não “ser nada”, o limbo parece calar-nos. Isso porque somos seres de linguagem, somos exemplares de uma comunidade pelo modo de nossa expressão. É ela que identifica com a forma com a qual pertencemos, inclusive tacitamente. Se estamos no limbo, nossa linguagem perde força, nosso lugar de fala esvanece, tudo fica menos potente.

Sendo assim, ninguém quer estar no limbo. Fazemos de tudo para pertencer. “Falamos de tudo” para pertencer. Mora na esfera de um desejo a necessidade de ter lugar. E tem algo de transcendente, de absoluta impermanência, pois somos quando nos expressamos, nos deslocamos, nos percebemos no todo. Somos singulares quando sabemos onde pertencemos, pura dialética, e, nesse sentido, segundo este autor, somos comuns. 

A distopia mora quando, na verdade, ser o todo é estar no meio dele e não ser especial. É quase um ser indiferente, porque individualizar, singularizar é saber qual é seu lugar e estar nele, prontamente. 

E por falar em lugar, sou leitura assídua, como artista de carreira pregressa, de Didi-Hubermann, historiador de arte que trouxe novos paradigmas para este campo. Dele – e o título do livro vai te instigar, para dizer o mínimo – trago a perspectiva de que, quando ocupamos um lugar, olhamos para o horizonte a partir dele. O livro se chama “O que vemos, o que nos olha” (2010) e parece muito sintomático revisitá-lo para falar de tempos atuais de redes digitais, vendo imagens transpassadas, com as quais nos perdemos na realidade. Essa digressão não é tão somente filosófica, mas é uma provocação em meio a uma juventude atravessada por olhares e, por vezes, esvaziada dos lugares que ocupam. 

“Olhante e olhado pertencem tanto ao âmbito da obra e da imagem quanto ao do antropos, lugar de ser humano” (Didi-Huberman, 2010, pg 22, introdução de Stéphane Huchet) 

é um ponto de partida muito flagrante dos nossos tempos. Porque, ainda que estejamos falando de arte, estamos falando do tempo histórico das imagens que nos compõem. Portanto, de tudo que nos atravessa, inclusive nas mídias sociais – notícias, pessoas, status, identidades –, tudo se resume a imagens. Nosso lugar de seres humanos se dá no pertencimento do que nos atravessa, então também estamos conectados ao modo com o qual olhamos e como somos vistos. Uma relação de mão dupla sobre nossa percepção de nós mesmos, do mundo ao redor e como o interpretamos. E isso, no mundo contemporâneo, inclui as imagens que produzimos em tão rápida escala nas redes sociais e no meio digital. O “mundo” hoje não é tão mais físico, mas é digital. Isso afeta as questões fundamentais de pertencimento.

As questões que permeiam a juventude não poderiam estar imunes à realidade que se apresenta, da qual eles estão em constante exposição, como que tirando mesmo a energia vital dessa fase da vida. Quando inicio este ensaio falando de inocência e potência, estou falando de uma fase transacional entre deixar para trás e para dentro a esperança, a segurança, a confiança a estima e avançar para frente e para fora a força, inclusive emocional, o desejo, as relações e o conhecer o mundo a partir deste lugar. Esse destempero traz dores e traumas tão consistentes para a vida adulta – como aqueles que deixamos na infância, e nossa juventude está avisando – que estes traumas podem roubar nossas vidas.

No dia em que escrevo mais linhas deste ensaio, para a nova configuração editorial da Revista Escuta, sinto-me ao mesmo tempo potente e inocente – porque a revista, da qual sou editora, se reinventa.Falando de um “eu”, quero falar do “nosso”. Quero falar contigo dos assuntos que nos permeiam e do mundo que se apresenta. Quero que possamos sentir e perceber, juntos, quais filtros nossa percepção absorve em meio a uma doença tão desejada que é a rede digital, sim um paradoxo, e também de como tudo isso nos atravessa. Quero falar de desejo de ser jovem, porque, além de um estado de espírito, sinto a juventude como uma revolução e, como diz o poeta, “amar é revolucionário” e tudo mais que nos deixa vulnerável é revolucionário. 

As revoluções são sobre incertezas e como lidamos com elas. São imagens de transição do mundo e como nos atentamos para que elas possam nos compor, mas também nos inspirar e “descompor”, ou seja, desfragmentar nossas certezas e construir novas… utopias. Rebeldia serviria para as utopias assim como a esperança serve para uma perspectiva adulta mais saudável. Quero dizer ao jovem leitor, ou jovem de idade, ou jovem aprendiz da vida:se você se sentir assim em qualquer idade da sua vida, está indo muito bem. Sei da sua dor; sinto que bagunça é essa que deixamos no mundo em que as escolas tem sofrido ataques, professores e estudantes, comunidade escolar e familiar tem sofrido com narrativas distorcidas, não só da ilusão ou até da mentira, mas, sobretudo, da dor. Muitos sentem dor na pele, na discriminação, no olhar, no bairro em que vivem, seja qual for. Sinto sua dor e olho com atenção para isso. 

Olhando, posso até ser uma qualquer, mas faço parte da um tipo de olhar que se olha ao mesmo tempo que se vê olhada, que, com isso, tem alguma coragem de ver e falar sobre dores tão díspares a uma fase que seria de dupla jornada – inocentes e potentes – mas de duplo poder – olhar para o mundo e ter a coragem de estar nele.

Posfácio. Como tudo que é da juventude, após a escrita da coluna vertebral deste texto, fomos arrebatados. Falecimento de Gal e de Rita, ídolas da minha juventude. Ao mesmo tempo, tenho feito o movimento que esta Revista pretende inspirar: um letramento social, racial, vendo de frente meus limites. E percebi, prontamente, que nenhum dos autores que citei são desse tempo; são, na verdade, da minha juventude. A partir desse olhar que se renova, o meu mesmo, gostaria de propor um novo olhar para revolucionar este texto. 

E uma das atuais revoluções é olharmos para o futuro e ele é mais indígena, mais interracial, mais  da natureza, pois as comunidades dos povos originários sabem muito bem sobre ser comum, uma subjetividade que pertence sendo um que faz parte. David Pavón-Cuèllar, professor de Psicologia e Filosofia, na cidade de Morelia, no México, em seu livro “Além da psicologia indígena – concepções mesoamericanas da subjetividade” (2022), conta vários aspectos dessa subjetividade inspirada nos povos das mesoaméricas, embora a contextualização geopolítica seja complexa. 

Em “a arte de não ser os mesmos”, a qualidade é ser múltiplo porque “não deixamos de ser quem somos ao nos transformar” (2022: 35). Não nos limitamos a uma identidade individual, há uma permissão e uma compreensão natural em mudar, se metamorfosear – algo que poderia nos dizer uma juventude completa mais potente. O autor traz três tipos de almas nessa concepção: “ihíyotl, individual, vital e passional; tonalli, predominantemente racional, também individual (…) e teyolía, inseparável do indivíduo, mas social, coletiva, compartilhada em parte com outros seres humanos e não humanos” (2002: 39). Essa última estende o indivíduo ao universo mineral, vegetal, animal e cultural. A alma se exterioriza, tem e está intimamente conectada ao todo. A saber, o uinic é tanto individual como comunitário; e o nosótrico é então “uma coisa só, um todo”, uma entidade subjetiva comunitária. E assim se segue, essa importante referência para nossa subjetividade tão fragmentada na sociedade contemporânea, mas tão sedenta por recuperar novas velhas cosmologias, como a indígena.

E é por isso que se fez fundamental, escrito em longos meses, revolucionar este texto. Com novos olhares, novas inspirações, recuperar nossa natureza é devolver a nós, terapeutas, jovens, pais e filhos, um olhar inspirado em que nosso pertencer seja natural. Não seja uma luta por sobrevivência, mas seja um sopro da natureza, que ainda invadida, se recontextualiza no nosso meio. Que nossa clínica seja mais comunitária, que nossa juventude possa ser mais natural. 

Assim, convido você a aguardar a próxima edição que continua com possíveis revoluções.

Nirvana Marinho

24 abril 2023, posfácio 14 junho 2023, publicado 31 julho 2023

@nirvana.terapeuta

Agamben, Giorgio. A comunidade que vem. Belo Horizonte: Editora Autêntica. 2013.

Pavón-Cuèllar, David. “Além da psicologia indígena – concepções mesoamericanas da subjetividade”. São Paulo: Perspectiva. 2022

Didi-Huberman, George. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34. 2010. 

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